EFEITO CASCATA
Doca Ramos Mello

O mundo todo sabe que os políticos brasileiros possuem grande espírito público e são extremamente zelosos com as causas sociais. Por conta desse caráter altruísta, há algum tempo uma senadora da República apresentou projeto de lei para tornar obrigatória a cota mínima de 40% de profissionais negros nas produções para tv. Queria, ainda, que fosse instituído o estudo da História e da Cultura da África até o ensino médio, bem como assegurar 20% das vagas das universidades federais para alunos carentes.

Eleita pelo voto popular para defender os interesses de um povo tradicionalmente oriundo de variadíssima salada racial, a distinta senadora, presa a seu espírito democrático, jamais se permitiria sectarismos que a levassem a cometer injustiças ou discriminação. Também não ousaria deixar que a acusassem de estar puxando a brasa para a própria sardinha, uma vez que seu marido e sua enteada, por acaso atores e negros, se beneficiariam com tal projeto. Na verdade, a ilustre senadora só estava demonstrando sua preocupação social, portanto as críticas feitas à sua iniciativa foram apressadas e improcedentes...

Além disso, afinada com a realidade de seu povo, a senadora sabe que o barco nacional navega com grandes dificuldades para brancos, negros, mamelucos, índios, cafuzos, imigrantes, etc., enfrentando gigantesco buraco por onde faz água, de tal sorte que todos lutam bravamente pela sobrevivência neste país. E todos merecem respeito. A nobre senhora elaborou um projeto de cunho social avançado e brilhante, que se não deu certo foi porque sofreu ramificações de teor especialmente revoltado por parte de gente que não valoriza a democracia.

Inicialmente, descendentes de japoneses formaram um movimento fortemente organizado para reverter uma situação que eles consideravam inaceitável. A colônia reivindicou uma cota de 30% de artistas e profissionais nipo-brasileiros nas produções de tv. Alegaram que nos últimos quarenta anos, um único ator nissei apareceu na telinha, ainda assim, representando o tradicional papel de agricultor (apesar de maquiado como jardineiro). Para eles, o fato reforçou o preconceito contra o grupo.

No roldão dos debates, questionaram a escolha da mulata Taís Araújo para protagonizar Chica da Silva, em detrimento da atriz Kimie Tetsuo Yanashiro, nissei belíssima, capaz de representar, cantar, dançar e requebrar com maestria e molho, muito melhor que Taís. Kimie não pôde sequer fazer os testes, só por ser nissei!

O movimento divulgou, na época, um manifesto contra o mulatólogo Sargentelli, exigindo que se declarasse também nipo-brasileirólogo, e que mantivesse entre suas cabrochas 50% de nisseis. Só declinou de vagas nas universidades porque seu grupo sempre arrematou os primeiros postos dos vestibulares, seria uma redundância inútil.

Por outro lado, a nação indígena fez lobby no senado, usando faixas e adesivos da campanha "Ao Índio o que sempre foi do Índio". Caciques de diversas tribos organizaram um jejum e uma pajelança em Brasília, objetivando tirar Valéria Valenssa (perdão, mas é assim que se escreve o sobrenome dela!) do posto de Globeleza e entregá-lo para Bartira Morici, bailarina indígena de raro talento. "Está na hora de o índio retomar seu lugar na tv. Bartira é mais bonita e, além do mais, pelada por pelada, a índia está muito mais acostumada", declarou Gilberto Almeida, índio legítimo, curandeiro da tribo curimbaba.

Irados, ainda cobriram Valéria de desdém, afirmando que a moça dança "um sambinha muito do mixuruca com as pernas presas, como quem está apertada para ir ao banheiro".

No sertão da Paraíba, quando soube do ti-ti-ti, Suelem Severina Saad de Oliveira avaliou que ela, sim, era o verdadeiro protótipo do brasileiro autêntico. E abriu o currículo: um avô sírio, outro avô índio, uma avó italiana, mãe mulata, bisavó cearense, pai ignorado, bisavô português, até holandês havia na família. A lambança resultou em sua pele razoavelmente alva e coalhada de sardas, coroada por basta cabeleira queimada, enroladinha e absolutamente pixaim - o popular sarará.

Suelem foi à luta. Reclamou das parcas oportunidades para os sararás, não na tv, mas no ramo de modelo e manequim, que era da sua preferência. Nunca se interessou por televisão nem universidades, aliás, sempre detestou estudar, o que considerava um atraso de vida, pois suas tias eram professoras, estudaram demais e - palavras cheias de risinhos -, "não ganhavam nem o que Luzia ganhou atrás da horta".

Queria mesmo era desfilar, aparecer nas revistas, fazer sucesso no mundo todo e ganhar rios de dinheiro. E reivindicou uma cota de 50% de modelos e manequins sararás nas produções de moda e nas revistas de mulher pelada.

O excesso de egoísmo e a falta de compreensão desse povinho vil impossibilitaram o projeto da senadora, coitada. Agora, porém, com a posse de Vossa Excelência Metalurgíssima dentro em breve, ouve-se dizer que ela estaria cotada para assumir um ministério. Espero que não se deixe derrotar e ponha em prática suas democráticas idéias - seria um avanço importante para o país. Quem sabe até possa aceitar sugestões, pois tenho uma que gostaria de apresentar: que tal 45% de mulheres com pouca bunda nos conjuntos do tipo "tchan"? Tanta moça sem bunda que não tem oportunidade de fazer sucesso, é ou não é? Uma injustiça.

A História da África? Nem te conto.... 

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