ESGARÇOU-SE O TECIDO
SOCIAL
Celso Costa Ferreira
O Braulino é gente boa, mas metido a falar difícil quando bebe:
— Nesta tarde bruma, minhas preces são olvidadas,descartadas como pregações no deserto dos
homens!— E isso só porque o garçom não lhe trouxe o chope como pediu.
Batatinha frita passa a ser "tubérculo ao óleo ebuliente"; dois dedos de pinga, "dois digitais daquela que que encerrou a passagem do vigilante por esse mar de lágrimas".
Bordoada, dono do Dias Contados, o pé-sujo que ele freqüenta, trata-o com a maior deferência desde quando ele chamou o seu estabelecimento de
podo-amundiçado. Quase chorou:
— Obrigado, doutor! A casa é pobre mas é limpa — falou assoando o nariz no forro da mesa.
A turma nem liga mais pros exageros do Braulino. Só se manifesta em situações especiais, por exemplo quando há "fato novo", isto é, mulher na jogada. Como no dia em que ele trouxe uma namorada recém-adquirida. A moça era uma coisa de louco, gostosa de turvar o pensamento, ou "lídima comprovante da existência de Deus", como diria o Braulino se já tivesse bebido. Mas ele chegou sóbrio, ressabiado por apresentar a deusa àquele bando de tarados.
O avião aterrisou, quer dizer, sentou-se — e fez-se o silêncio. Ninguém sabia o que dizer ou como começar um assunto de modo a não parecer simplório ou
sem-graça:
— Vai que o Braulino conquistou a moça embriagado, e ela apaixonou-se por causa daquele seu palavreado empolado
— era mais ou menos o que cada um pensava naquele momento.
A solução seria fazer o Braulino beber e observar a reação daquela maravilha ao seu palavrório:
— Desce uma gelada! — gritou Piolho, que tinha fama de intrometido, mas que, dadas as circunstâncias, quase não teve coragem de fazer o pedido, na dúvida se o correto era "desce ou desça".
Mas, enfim a cerveja desceu, depois outra e mais uma!, o ambiente começou a descontrair-se
e o pessoal passou a tomar certas liberdades com a moça. Um puxou sua cadeira para mais perto, para protegê-la de um vento encanado que passava exatinho por ali; outro achou de espantar uma mosca de seu ombro e esquecer a mão lá; um terceiro
arvorou-se de fiscal das batatas:
— Batatinha quente nenhuma há de queimar essa boquinha linda!— dizia assoprando cada uma,
entregando-a a ela, dizendo: "Tá gotoso, tá?"
Braulino, surpreendentemente, bebia e nada de abrir a boca. Só olhava, indignado com a traição que seus amigos estavam lhe fazendo. Sua mente fervia e
ele não sabia como reagir e levar sua gata embora dali, antes que "lançassem mão dela como quem toma uma nau à deriva". E foi no mesmo instante que lhe veio este pensamento, que ele fez o gesto com o dedo indicador, como quem pede a palavra, e que era conhecido de todos os presentes. Significava que Braulino tinha feito "a viragem" e ia pontificar, que era seu sinônimo preferido para falar.
— Pronto, lá envém besteira — disse Piolho, esquecendo-se de sua súbita finesse.
Braulino levantou-se com toda pompa, pegou sua deusa pela mão, olhou fixamente nos olhos de cada um, e falou com a voz embargada:
— Amigos, esgarçou-se o tecido social!
Os olhinhos da namorada tremelicavam de emoção quando ela abraçou o Braulino pela cintura e os dois saíram embriagados de amor porta afora. Piolho quis perguntar o que era esgarçar, mas foi impedido:
— Piolho, peça mais uma e cale essa boca, Piolho!
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