CRÔNICAS
DE UMA LABUTA
Beto Muniz
Em seis anos perdi duas máquinas fotográficas. As duas, por infelicidade, máquinas digitais — fotos transferidas diretamente para o computador. Caríssimas! As máquinas. Propriedade da empresa que trabalho. A primeira foi acidente, não desembolsei um centavo, mas fiquei constrangido por ser, teoricamente, responsável pelo prejuízo. A segunda eu perdi fora do horário de trabalho e, já que estava sob minha responsabilidade, devo arcar com metade do prejuízo. Acho justo... Mas o leitor deve estar se perguntando: e eu com isso? Você nada tem a ver com isso, mas, a exemplo de um cronista aí que transforma até a agenda pessoal de telefones em livro vendável, eu saquei que meu dia-a-dia também pode ser transformado em crônicas. Deixa eu te dizer qual é o meu trabalho: Eu faço captações de endereços para instalação de publicidade. Fico passeando por São Paulo à procura de locais onde caibam painéis luminosos. Nestes painéis a minha empresa veicula publicidades diversas. É isso, sou um dos responsáveis pela poluição visual na capital paulista. Mas não pense que eu escolho a torto e a direito o local onde será instalada nova publicidade. Isso é determinado pelo briefing enviado pela agência de publicidade contratante. Funciona exatamente como um bolo, e todo mundo come: o dono do imóvel onde é instalado o painel recebe uma fatia na forma de aluguel mensal por ceder o espaço; a minha empresa recebe algumas fatias por instalar e manter a publicidade instalada; a agência de publicidade ganha metade do bolo pelo trabalho de definir onde deve instalar a publicidade Y para o produto X; o anunciante, que é quem faz o bolo, ganha vendendo mais produtos X; e eu, se trabalhar direitinho, posso passar o dedo no chantilly desse bolo enquanto ele é dividido entre a turma citada acima. Lógico que na escala apropriada são milhares de anunciantes querendo anunciar seus produtos X e no geral eu estou procurando espaço para atender dezenas de briefings ao mesmo tempo. Por outro lado, eu também sou consumidor e acabo devolvendo o chantilly para os anunciantes rechearem outros bolos que serão divididos assim que eu meter o dedo neles novamente, mas a base do processo todo é a explicação acima... Agora surge um hiato onde o leitor deve estar pensando: Tenho mesmo que saber tudo isso para ler uma crônica? Desculpe, eu quis fazer essa introdução (favor não maldar) para dizer que a melhor parte nessa história toda fica comigo. Sou o cara que vai, olha, fotografa, faz fotomontagem no local, simula o painel instalado, conversa com as pessoas convencendo-as a permitir que no seu quintal seja instalado um painel publicitário e etc... É nessa rotina que surge a possibilidade de minha labuta virar livro. Enquanto a turma toda vê número, índices, chantilly e papéis, eu sou o cara que lida com gente, que faz contato com pessoas, que olha no olho do povo. Para um escritor amador em tempo integral, é nesse ir e vir que a vida vale a pena. Captou? A exemplo do escritor famoso, que transformou seus objetos pessoais em assunto para um livro recordista de vendas, eu tenho no meu cotidiano profissional uma pequena fortuna em episódios. São comédias da vida labutada (nenhuma paródia às comédias do Veríssimo). Teve um dia em que eu estava fotografando um imóvel para simular um anúncio instalado ali e fui convidado pela senhora da casa ao lado para fotografar suas rosas: "Meu roseiral é muito melhor cuidado que o da vizinha, mas isso é porque ela não tem muito tempo para cuidar, coitada. Trabalha muito". Ela achou que eu estava fotografando as flores da vizinha e que não tinha visto suas rosas bem mais viçosas. Claro que fiquei meia hora clicando botões desabrochando para alegria da velha senhora que me ofereceu biscoitos. Penso que meus cliques compensaram anos e anos de desvelo pelo roseiral. Não tive coragem de desfazer o engano. Às vezes desfazer o engano acaba com a piada. Certa ocasião, um ônibus escolar parou ao meu lado e, enquanto alguns meninos subiam, as crianças dentro do coletivo pediram que eu as fotografasse. Cliquei todas aquelas carinhas felizes. Duas cabecinhas em cada janela. Quando cheguei na janela do motorista eu olhei sério e disse: "você é muito feio, vai queimar a foto". O ônibus inteiro explodiu numa gargalhada e eu soube, tempos depois (instalamos publicidade no local), que por minha causa o motorista era conhecido como "Tio Feio". Ficou famoso e continua feio. Sempre que faço check-in fotográfico da campanha instalada encontro com ele conduzindo seus sobrinhos lindos. Clico todos, menos o feio, só para manter o bordão. Ele me sorri, sabe que é escada nessa piada. Um momento inesquecível nessas minhas aventuras, que deveriam ser consideradas trabalho, aconteceu num verão. Sol escaldante e eu fotografando o quintal de dona Adélia, futura locadora de espaço. Ela mora sozinha e vez em sempre o filho vem visitá-la. Naquela ocasião ela estava apreensiva, não me conhecia e o pouco que entendera da minha proposta era que eu queria pagar dinheiro para plantar um poste de aço no seu quintal com uma publicidade lá no alto. Recomendou que eu falasse com o filho, que viria na quinta feira. Prometi voltar e marcamos um horário. Na quinta eu cheguei poucos minutos antes do combinado e a mulher estava aflita. Pediu que a ajudasse, tremia. Quis que eu penteasse seus cabelos. Queria estar bonita para a chegada do filho, que viria acompanhado da moça que pedira em noivado. Apesar de pasmo pelo inusitado eu penteei seus cabelos. Todos brancos. Prendi-os em forma de coque no alto da cabeça, como vi minha mãe fazer inúmeras vezes, e aguardei também ansioso. Ajudei a preparar suco e tirei os pãezinhos de queijo do forno. O filho se atrasou mais de hora e eu ali, firme, dividindo pão de queijo frio e suco quente com a ansiosa senhora até os atrasados chegarem. Naquela noite não falamos de negócios, não achei apropriado, nem lembro como fui apresentado. Sei que pedimos pizza, o filho pagou e comeu com a noiva — dona Adélia e eu estávamos empanturrados. No dia seguinte ela me telefonou e permitiu que eu fizesse o que quisesse no quintal dela. "Sem permissão do filho?" — perguntei. Ela respondeu que o filho não tinha nada que saber da vida e dos negócios dela. Confiava em mim. Continua confiando e eu penteio seus cabelos quando passo por lá às quintas-feiras, dia de visita do netinho, já com dois anos, que me chama de tio. Acha que sou da família. Não é sempre, ainda bem, mas também vivo momentos tristes. Num imóvel que atendia plenamente o briefing eu fiz contato e apresentei uma proposta para o Sr. Miguel, um homem bonachão que pretendia ser sério em tempo integral. Depois de muita encenação na tentativa de elevar o valor na proposta original, ele acabou arriando e me confessou que estava numa situação financeira difícil. Faria, sim, negócio com minha empresa, mas antes falaria com a esposa que estava na casa da filha e voltaria em três dias. Quando retornei, cinco dias depois para pegar resposta, ele havia falecido e a filha, uma moça magérrima, estava levando a mãe de vez para sua casa, no interior. A propriedade aqui na capital seria vendida. Nem me atendeu, eu soube de tudo pela vizinha. Fiquei triste, mas fotografei, fiz proposta e plantei um painel na casa da vizinha informante. Afinal, esse é meu trabalho. Voltando a falar das máquinas fotográficas que perdi, pode parecer cômico, mas pela minha ótica foi triste também perder a primeira máquina fotográfica. Eu estava prospectando um endereço na Avenida Moreira Guimarães, quase chegando ao Aeroporto. Encontrei e comecei a fotografar o imóvel. O trânsito estava calmo e eu atravessei uma das pistas e fui para o canteiro central para melhor fotografar o local. Não percebi quando o fluxo de automóveis começou a aumentar. Fiquei preso ali entre o muro de concreto e algumas flores. Meia hora depois eu ainda não conseguira atravessar nenhuma das pistas quando começou a chover. Vinte minutos na chuva o trânsito parou totalmente e eu voltei encharcado para o carro. Nesse dia peguei um resfriado e a máquina fotográfica digital ficou danificada. Sem atinar com o prejuízo, os frentistas do posto de gasolina assistiram a tudo de camarote. Metade deles torcendo para o cara engravatado ser atingido por um raio, a outra metade para que a poça d'água, que virava uma cortina barrenta a cada carro que passava, alcançasse o mesmo cara engravatado. A perda da segunda máquina foi menos trágica, e também menos cômica. Para dizer a verdade, nem sei bem o que foi. Na sexta-feira guardei no porta luvas e na segunda-feira não a encontrei quando precisei fotografar um endereço. Sem conseguir provar, eu desconfio do posto onde mandei lavar o carro. A tristeza maior nessa perda, além dos prejuízos materiais, é constatar que fotografando eu coletei umas boas histórias. Por permitir que eu fotografasse, mostrasse a pose imediatamente (para alegria do fotografado) e depois deletasse tudo sem custo algum, a máquina digital foi coadjuvante involuntária para as melhores crônicas. Enquanto não for adquirido novo equipamento, utilizo uma máquina comum, dessas em que cada filme revelado custa uma fortuna e, tendo que economizar nos filmes de 36 poses, não tenho coletado novas histórias. Ou seja, tão cedo o livro CRÔNICAS DE UMA LABUTA não sai. |