EXORCIZANDO A ALMA
Shirley Kühne
Dezembro de 2000. Selma olhava a caixa revestida de veludo azul, com pequenas letras douradas a revelar a origem do objeto esquecido. França. Made in France. Abriu o botão de pressão e retirou os óculos de lentes pequenas e aro delicado. Examinou. Numa das hastes estava escrito, quase imperceptível, a origem. Taiwan. Falsos. A bela caixa não continha o objeto verdadeiro, assim como as palavras de Gervásio não passavam de mentiras. Rememorou o e-mail dele: “Eu dei falta sim dos óculos! Passo aí para pegar ou você deixa na portaria?” Pensou dois dias. Devolveria ou jogaria fora para nem ter que vê-lo mais? Respondeu. Ele que pegasse os óculos com ela, àquela noite. José, o porteiro, dessa vez, ficaria de fora. Claro, claro, nada disso era novidade para ele, acostumado a vê-lo chegar nas noites retintas ou mesmo para Tobias, o gato ruivo que nem fazia mais questão de dormir entre os dois lá pelo meio da madrugada...
Uma semana e nenhuma resposta dele. Resolveu que daria fim aos óculos e àquele assunto.
Lembrou-se que com André tinha acontecido algo semelhante, só que o objeto esquecido fora o relógio. Deixou um recado na pensão onde ele morava: “Preciso devolver-lhe o relógio para que ele continue assinalando o tempo que você perde; as vezes que ainda se repetirão os seus julgamentos parciais, a sua estéril reflexão sobre o que move as pessoas. Homens e mulheres. Na loteria de nossos dias a gente não ganha tempo, mas afetos. E você perdeu!”. Na verdade não devolveu. Atirou o relógio do 8º andar. André não gostava de velas e acreditava em mau-olhado e espíritos malignos. Por isso, Selma botou fogo em todos os vestígios dele encontrados pela casa – camisetas, escova de dentes, cabelos, bilhetes, um vaso de violetas rosas. Defumou a casa.
Gervásio não. Gostava de penumbra e sempre acendia velas pela casa. Beijava apaixonado. Parecia. Estava separado da primeira esposa quando conheceu Selma em uma festa quatro anos antes. Mas com o segundo casamento, ela era a outra (ou uma das outras, nunca o soube). Por isso, sempre tinha pressa. Saía cedo e ficava dez dias sem aparecer, às vezes menos e tantas outras mais. Mas nunca esquecia nada. Voltava quando queria. No último encontro, ela o mandou embora no meio da madrugada. O sexo já não era pleno, intenso. Selma sentia cada vez mais um desconforto no corpo. Era como se aprofundasse o vão entre a carne e o espírito....
No início, quando só olhares furtivos alimentavam a fome, vê-lo em meio aos amigos comuns já era o suficiente. As mãos inquietas acendiam cigarros, e por trás do copo suado pela cerveja, o corpo desejante suava como em verão de chuvas torrenciais. Anunciava-se um dilúvio. Lembrou-se do primeiro encontro: regado a culpa e ciúme. Prenúncio de fracasso talvez... Ele então separado, ela ainda casada. Transaram ardentes. Selma explodiu em choro convulso. Medo, muito medo de si, dele, do marido que ficava em casa escrevendo, escrevendo, ela nunca sabia o quê! Ele irado tendo que levá-la de volta para aquela casa. Por vezes ligava de madrugada. Selma atendia ainda acompanhada e desligava com alguma desculpa... Quando enfim separou, ele sumiu. Meses. Apareceu com uma morena bonita, de pele tostada e cabelos escorridos. E ela, branca e sardenta, sentiu a alma escurecer de dor, raiva e desejo.
Depois vieram os encontros pelas madrugadas, e os vários e-mails apaixonados dela:
“Saboroso encontrar você nas frestas do meu cotidiano:
Hábito matinal, café quentinho, aroma morno,
no forno o pãozinho - manteiga se derretendo
entre as dobras de massa crocante, macia e úmida,
lembrei pudicamente da minha língua na sua boca,
a mais deliciosa dos meus últimos 20 anos de cafés pela manhã!”
Mas as palavras doces arrebanhavam mais desilusões. Decidiu que aquela seria a última vez. Juntou as roupas abandonadas ao lado da cama e as colocou em seu peito que arfava sonolento. Vá embora!, disse resoluta. Atordoado e contrafeito, Gervásio assentiu sem convicção: então tá! Ameaçou vestir a camiseta, mas atirou-a para o lado. Agarrou Selma e a abraçava dizendo que era assim mesmo, que não dava para fugir daquela história marcada na alma e que ficariam velhinhos juntos. Etcétera. O de sempre. Saiu atrasado.
Selma ainda com os óculos na mão, hesitou segundos, levantou-se do sofá onde tinha passado a noite em claro, pegou a caixa e saiu. Eram seis da manhã. Mais uma escurecida manhã em seus dias. O elevador arrastou-se em minutos, enquanto ela girava o tempo e a haste em uma das mãos: pra lá e pra cá, pra lá e pra cá... No térreo, nem viu o zelador. Atravessou a portaria e encostou no muro da casa vizinha para observar. Guardou os óculos. Não tinha idéia de quem abordaria, mas daquele dia não ia passar. Várias pessoas desfilaram por seus olhos atentos. Uma bela jovem oriental com um corte de cabelo assimétrico. Um casal de meia-idade. Ele de agasalho preto, ela de saia estampada e jaqueta branca acinturada. Não se falavam, mas seguiam, talvez adestrados pelo tempo, lado a lado. Crianças saindo da escola. Um zumbido infantil misturado ao ruído da cidade. A uma distância de cinqüenta metros, na outra esquina, ao lado da pracinha do colégio, um homem negro pouco grisalho, mas já bem acabado e maltrapilho, dormia em sua carroça, cheia de papéis e quinquilharias, estacionada entre o asfalto e a calçada, um meio-fio de vida. Há vários meses está no local. Os moradores das casas cansados de mandá-lo embora, davam-lhe comida, roupas velhas e cadernos. Sentado numa lata de tinta, em dias de sol ou com a cabeça coberta por um plástico preto quando chovia, passava os dias escrevendo. Escrevia em qualquer papel que encontrava e dava suas palavras para quem pedisse. Dizia que tinha sido professor em Coimbra. Selma aproximou-se silenciosa, e com cuidado deixou a caixa de veludo azul próxima ao rosto do homem sereno pelo sono.
O dia clareou. De noite o e-mail entrou na caixa postal dele: “Como você não me vê mesmo e, provavelmente, isso não acontecerá neste ou noutro milênio, resolvi doar seus óculos para um "sem óculos". Não se preocupe. O sujeito parece ter bons olhos. Selma”.
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