ALMA MINHA
Paffomiloff

O demônio não gosta de me visitar, porque teme as palavras, minhas amigas de longa data.

Deus também é uma palavra, composta de quatro caracteres, que invertida desfaz o universo, mas ninguém parece saber qual é. Na verdade, tenho fortes evidências de que, se alguém detém tal conhecimento, jamais o testou.

Todos têm seus motivos para temer palavras, menos eu, que as amo.

Às vezes, contudo, negócios pessoais forçam o demônio a visitar meu humilde apartamento em Copacabana. Ele bate três vezes à porta e diz a senha. Mando meu filho para o quarto, pois sei que os desejos dos adolescentes são lenha nas forjas do inferno.

- Entre, Samael - convido, conferindo meu estoque de sachês anti- enxofre.

- Dante, Dante, Dante... como pode viver tão somente para os livros.

Ele queria que eu falasse de meu filho, ou de meus projetos de vida, e resisti, pois as palavras são minhas amigas, mas o silêncio é a minha força.

Se eu manifestasse algum desejo, abriria um canal de negociação em posição desvantajosa.

- Precisa de mim? - cortei.

- Preocupo-me com você - ele desviou - posso ouvir sua solidão reverberando nos pilares dos abismos.

A auto piedade é o calcanhar de Aquiles dos que não têm as palavras por amigas, barras de ferro que os covardes cravam nas portas de suas casas, para que não fujam de seu próprio mundo altista.

- É algum detalhe de linguagem? - arrisquei.

O odor do enxofre se abriu como uma cortina, dando o lugar ao perfume suave da jasmim daquela que não tem mais nome no mundo. Admito que foi uma boa jogada.

Boas lembranças, impregnadas daquela flagrância, desengavetaram-se espontaneamente dos recessos mais ermos de minha memória, tentando se apossar do meu coração.

Meus olhos formigaram, mas não chorei. Queria gritar com o demônio, mas isso seria uma forma de revelar que me atingira.

- Deve ser algo sério - concluí, pela força de seu ataque - diga logo.

- É uma palavra... - titubeou.

- Imaginei.

- Como se diz, quando uma pessoa faz sexo com demônios? - indagou, por fim.

- Quando foi?

- Er... - ele fez as contas nas ponta dos dedos - semana passada. Faz alguma diferença?

Anotei o preço da informação num pedaço de papel e entreguei para ele. Eu não responderia mais nada sem fechar um acordo. Samael assentiu com um gesto de impaciência.

- Então está bem - pigarreei - antigamente, tal ato era chamado de bestialidade, mas a partir do século XVIII, foi renomeada como daemonidade, por Lois Marie Sinistrari d´Ameno, de forma a impedir que as mulheres que cometessem tal pecado fossem absolvidas por engano, alegando que haviam apenas copulado com um simples animal, que é um delito menor.

Ele pareceu surpreso, pois os seres imortais tendem a julgar que as palavras são eternas e que guardam sempre os mesmos significados ao longo das eras.

Mas as palavras não são absolutas. Nascem, significam coisas diferentes para cada pessoa com quem interagem e acabam por morrer, embora sua memória possa ser parcialmente preservada em suas descendentes.

Palavras são como pessoas e não como demônios.

E são minhas amigas.

Sem mais o que fazer, em débito para comigo, Samael retirou-se deixando um miasma de enxofre.

Abri as janelas e fui até meu quarto, onde olhei a fotografia de minha amada Beatrice, hoje à distancia de uma vida, dure o quanto durar.

Acendi um incenso de jasmim e deixei as lágrimas lavarem minha alma sem dono.

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