ASSOCIAÇÃO DOS FAMOSOS ANÔNIMOS
Nelson Moraes

(Todos os personagens deste conto são fictícios)

Hoje cedo: alma lavada, passada e estirada na varanda, para tomar uma fresca. Desta varanda onde eu assistia à manhã chegar devagarinho e via ainda dormindo, lá no quarto, Heather Mills, descansada de seu Appaloosa. Ou melhor, Alcione Sant'anna (ela reafirmara o apóstrofo e o dígrafo, durante o drinque). Alma lavada, sim, senhor, depois de mais de vinte anos. 

Ontem: eu já vinha acompanhando a série de anúncios nos classificados, tomando tudo, em princípio, como mensagem cifrada ou coisa parecida - até que ontem me dei conta da limpidez do significado: nada de subliminar, nenhuma codificação. O anúncio apenas conclamava os membros da Associação dos Famosos Anônimos para suas reuniões diárias. O que poderia haver de mais objetivo naquilo? Foi o que decidi apurar, já que a Cássia tinha ido passar o fim-de-semana fora com os meninos. 

Oito anos atrás: Cássia e eu casando. Eu já esquecido - claro - de meus latejos adolescentes. Mas não. Cássia não tinha no olhar a brasa impositiva de Heather Mills. Cássia era tão, tão dócil. 

Voltando a ontem: eu largaria pendurado no cabide do quarto não só o paletó de executivo sênior mas também a condição de pai e marido. Algo já me fazia pressentir isso, quando apaguei a luz da sala e saí. Chegando lá vi cadeiras simples, dispostas ao redor de um pequeno púlpito com microfone. O salão encheu-se devagar; eu reparando em fisionomias entre insignificantes e muito remotamente familiares. Esta familiaridade sem nitidez pipocava aqui e ali, me fazendo assimilar aos poucos a natureza daquela reunião. Um dos presentes subiu então ao púlpito e abriu os trabalhos, registrando a satisfação em reunir mais uma vez aquela categoria tão peculiar de membros. À medida que ele falava eu ia vislumbrando um ensaio de qualquer coisa reluzente naqueles olhares quase apagados - como se chamados novamente à evidência, e nisso quase se comprazendo, à beira da comoção: os famosos anônimos, dizia o orador, que uma vez usufruíram da glória - efêmera ou relativamente duradoura -, desfrutaram da condição de celebridades, e hoje, destituídos pelo desbotamento na memória do público, debatiam-se na infindável angústia do anonimato, na crise de abstinência da fama. Eram essas as palavras do orador, que prosseguia: pois a inconformidade fizera-os reunir-se naquela associação de fins tão nobres quanto reconfortantes, onde todos poderiam irmanar-se na amargura, suavizando-a com a doçura da nostalgia compartilhada. Após o discurso, vários membros alternaram-se ao microfone, dando os testemunhos - e aí a sensação de imprecisa familiaridade ficou menos nebulosa para mim: sim, eu reconhecia a antiga cantora de músicas picantes. A esquecida dançarina de programas de auditório. O ator-galã de uma novela só, de longínqua lembrança. O combalido comediante a quem nem programas de terceira categoria queiram mais. O cantor de quem tantas vezes rasgaram as roupas. O repórter-sensacionalista que hoje cobria baile de debutantes de subúrbio. E vi, também, Alcione Sant'anna, dubladora. Olhos bem delineados para realçar a maquiagem que escondia a idade. Aliás, mais ouvi do que vi, pois naquele instante reconheci. Heather Mills. A voz de Heather Mills. 

Mais de vinte anos atrás: outro capítulo de Red Ranch, na TV. Versão brasileira, Herbert Richers. A protagonista, Heather Mills. Esplendorosa Heather Mills. Um seriado diferente, o único bang-bang onde quem mandava era a mulher: decidida, nos olhos pura brasa impositiva. E linda, uma lindeza improvável naquela situação agreste. Jovem viúva. Dois filhos. Dona do rancho. O Red Ranch. A chamada da TV garantia que ela domava todos os seus Appaloosas mas ninguém fazia o mesmo com seu coração. Vários pretendentes, nenhum campeão. Um a um nocauteado pela indiferença. E a voz: na cama, embaixo de meu cobertor, a voz com ecos da doce rouquidão de Heather Mills fazendo meu peito ferver, a fervura indo ebulir ventre abaixo, para fora do cobertor, fora do quarto, entre os azulejos onde logo eu tomaria uma ducha. E aguardaria Heather Mills no próximo episódio. Uma vez me disseram: "Tem um filme dela passando no cinema." E eu iria? Ouvir Heather Mills falando inglês - sentir aquela fala doce e rouca adulterada pela voz original? Hã-hã: never, brother. Achei que fosse esquecer Heather Mills e ela dormindo esses anos todos em meu peito.

Voltando a hoje cedo: eu fumando na varanda do motel, Heather Mills dormindo no quarto. Após a reunião eu convidara Alcione para um drinque. Lembro de sua voz, eu disse. Acompanhei todos os seus filmes, jurei. Não citei a série. Após o sexto drinque, o convite. Meu coração em brasa, já na garganta. Debaixo do cobertor, no escuro, eu pedindo: faz Heather Mills. Chama meu nome. A voz doce e rouca, incandescente. Dominadora. Cássia era tão dócil. E minha alma lavada, aberta para a manhã tão fresca. 

Hoje à noite: acho que Alcione lavou a alma também. Não a vejo na reunião dos Famosos Anônimos. 

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