CRÔNICA DE UM MENINO
QUE LAVOU A ALMA
Bruno Freitas
Antes de dormir, o menino escovou os dentes e espiou a tevê da sala, escutando o jornalista dizer nas manchetes de telejornal, que os torcedores do Fluminense sentiam-se com a alma lavada. Era o tipo de coisa irritante nesses jornais que ele escutava, e nunca entendia. Dormiu a noite inteira tentando imaginar a razão que fazia os torcedores do Fluminense sentirem-se de alma lavada. Como era se sentir com alma lavada? Como lavar sua própria alma? Isso era possível? Porque lavar a alma? Todas as perguntas sem respostas ficaram ecoando na cabeça do menino até o dia seguinte.
Foi quando ele acordou com um terrível presságio, mesmo sem saber o que significava presságio. Mas podia-se dizer que ele acordara com um terrível pressentimento, de que ele também poderia precisar lavar sua alma. Lembrou-se das eternas broncas de sua mãe, por dizer nomes feios, nos momentos de raiva. Mas como evitar todos aqueles palavrões, se os escutava em qualquer esquina. Lembrou-se das palavras de sua mãe, alertando-lhe que se falasse esses nomes feios novamente, sua boca ficaria tão suja, que teria de ser lavada com água sanitária, e tudo mais. Era isso, o que ele precisava: água sanitária, e tudo mais. Sendo bom pra boca, talvez fosse bom também para a alma.
Foi então que o menino percebeu que todas as pessoas, a quem escutara um dia, dizendo os mesmos nomes feio que aprendera, e sua mãe lhe dizia que sujavam a boca, devia também ter bocas sujas. O que essas pessoas faziam para terem suas bocas lavadas? Seriam essas pessoas, torcedores do Fluminense? Seria possível, mesmo lavar a alma? Como lavar sua alma? Todas essas perguntas ecoavam na cabeça do menino, e ele sabia que teria que perguntar a alguém mais cedo ou mais tarde. Quem seria?
Na mesa do café, ninguém lhe deu atenção. Seus irmãos estavam preocupados demais em brigar pelo último pedaço de pão, enquanto sua mãe ocupava-se em apartar a confusão. Seu pai era o único inerte ao fato de a vida continuar, que lia as notícias do jornal, escondendo-se fundo nas páginas de classificados. Ninguém a perguntar... Ninguém mesmo. Ficou calado até o caminho da escola, quando desceu do carro na maior velocidade, a encontrar os colegas.
Não podia mais esperar pra compartilhar suas dúvidas com alguém que lhe entendesse de verdade. Alguém que lhe apoiasse e fosse solidário o suficiente. Algum colega de classe. Foi tudo, em vão. Ele chegara um pouco atrasado e perdeu todo o burburinho da véspera das aulas. Mal conseguiu alcançado o professor que já havia entrado na sala. Sentou-se quieto no seu canto, e lá ficou remoendo suas dúvidas.
Na hora do recreio, ele encontrou-se com os colegas, mas nenhum deles parecia querer partilhar suas dúvidas, já que possuíam muitas outras mais importantes no momento. Porque alguém tem alma lavada? Ninguém parecia querer saber... A questão pouco importava, já que os colegas queriam apenas se divertirem nos poucos minutos de recreio, como se a diversão fosse escapar por suas pequenas mãos.
Na sala de aula, o menino jazia inquieto em sua cadeira, e mal podia prestar atenção na matéria. A professora logo notou a inquietude do menino. "Quer perguntar alguma coisa?". Perguntou a professora. "Fessora: Quem fala nome feio tem que lavar a boca com água sanitária?". "Larga de ser inconveniente, menino!". "Fessora: A senhora também é Fluminense?". Perguntou em seguida, o menino. A professora nada entendeu, e também nada respondeu. Agiu como se o menino estivesse fazendo brincadeiras na sala de aula, e enviou-o a diretoria da escola.
O menino saiu cabisbaixo da sala de aula e enfrentou o longo corredor até a diretoria. Na sala da diretora, ele esperou e esperou muito além de uma aula, que nem se importou com a espera. Era melhor ficar quieto na sala da diretora que voltar à sala de aula. Afinal de contas, o que é um peido, pra quem já está todo cagado. A Diretora, enfim atendeu o menino que repetiu as mesmas questões que tanto o atormentavam, esperando alguma elucidação da maior autoridade na escola. A Diretora ateve-se a dizer ao menino que prestasse mais atenção às aulas, e que deixasse as questões externas para mais tarde.
O menino saiu da diretoria, mais confuso do que quando entrara. As aulas terminavam e o menino seguiu em direção à igreja, a fim de questionar o velho padre, sua última esperança antes de chegar em casa. Na igreja, o velho padre estava ocupado escutando uma longa fila de pecadores no confessionário. O menino interrompeu um pecador dentro do confessionário e questionou o velho padre, que logo irritou-se com a ousadia do menino. "Não vê que estou ocupado, menino?". "Como eu faço pra lavar minha alma?". "Pra que você quer fazer isso, menino?". Questionou intrigado, o pecador penitente. "Não se pode fazer isso, menino! Lavar a alma é impossível!". Respondeu o padre, sem dar muita atenção ao menino e empurrando-o pra fora do confessionário. "Agora vai pra casa, e me deixa em paz.".
O menino saiu da igreja e caminhou vagarosamente até em casa, onde sua mãe já preocupava-se com a demora do rebento. O menino entrou em casa logo recebendo um puxão de orelha de sua mãe, que dizia estar cansada de tanto pedir que voltasse pra casa sem demoras, ao sair da escola. O menino ouviu calado e achou que aquele não seria o melhor momento pra questionar suas urgências mais extremas. Mas o menino sentiu que toda sua existência dependia daquela questão e perguntou:
"Mãe... O que é Fluminense? Hein?"...
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