ZOEIRAS DE MENINO
Beto Muniz

 
 

As pessoas vão crescendo e nem se dão conta que estão se tornando adultas, quando dão por si já esqueceram noventa por cento das felicidades vividas na infância. Eu não! Não é por conta de umas calças compridas tapando as cicatrizes nos joelhos ossudos que vou esquecer assim facilmente as minhas zoeiras de menino criado no interior. Aquilo é que era vida de moleque sadio criado com leite de cabra e mingau de milho triturado no pilão, e não essa pasmaceira de hoje em dia onde cada garoto tem seu videogame e se a mãe bestar um tantinho assim ele passa o dia enfurnado no quarto vendo os hominhos se baterem na tela do computador. Sem contar que bobeando no controle das refeições esse pirralho vai viver só na base dos McDonalds. Eu hein! Pode ser por isso que a inteligência não se desenvolve e o esquecimento toma conta facilmente... Num tô dizendo que é! Disse só que pode ser.

Na minha infância, além de atender uns poucos afazeres - que em qualquer vila que se preze é de praxe a criançada ter responsabilidades desde miúdo mesmo que seja coisa boba, tipo cuidar das galinhas e criações pequenas - o meu dia era preenchido com estripulias típicas da idade, que eram construções de brinquedos e brincadeiras que faziam suar mais que as obrigações de praxe. E não vou descrever aqui todas as traquinagens e invencionices daquelas épocas porque o papel é pequeno e pra explicar tudinho seriam precisas muitas dessas folhas brancas aqui. Nem é porque as diversões fossem complicadas, mas é que dá mais trabalho explicar elas direitinho do que brincar propriamente. É isso mesmo, fica mais fácil mostrar brincando que mostrar explicando. Se é que me faço entender.

Tem uma passagem que não esqueço e vou contar agora: o caso das brincadeiras envolvendo a Penada. Dizendo assim o nome dado a coitada, até parece que a criatura era uma ave. Alguém até arriscaria dizer que era uma galinha, uma angola ou uma pata. Não era. Penada não era bicho que Deus deu pena, mas uma égua. Desajeitada, a coitada! Tinha só três quartos do tamanho das éguas normais e, além de miúda, apresentava uma carinha tristonha. Eu peço que não duvidem que um animal daqueles pudesse entender o que fosse tristeza. Penada podia. Dava pra ver em seus olhos, que também tinham um terço a menos no tamanho que os olhos de outra égua qualquer, mas que eram danados de brilhantes. Ela olhava pra molecada com aquela carinha de tristeza chinfrim e todo moleque da vila, por mais maligno que fosse, perdia a coragem de judiar da Penada. Então era assim, por conta dos olhos caidinhos, como que pedindo pra terem dó, que a éguinha pastava em paz as gramas que o povo plantava sobre as tumbas e catacumbas do cemitério local. Lá na vila todo mundo, afora os Queiroz e os Calais, era gente pobre. Nem dinheiro pra fazer túmulo em alvenaria aquela gente possuía. Então plantavam grama, pois era bem menos que barato, bastava pegar na borda do mato e plantar na terra que sobrava da cova. Depois a Penada cuidava de aparar quando o gramado se desenvolvia além da conta, de modo que ela tinha alguma serventia mesmo sendo mirrada.

Aposto que era pelo tamanho pouco desenvolvido que ela escapava do arado e tinha tempo de aparar grama em tumba de pobre. Arar terra era tarefa sobrante para as éguas de quatro quartos inteiros. Nisso eu era moleque e já pensava que ela, a Penada, tinha parado de crescer por inteligência, e era também por inteligência que ela ficava olhando pra molecada com os olhinhos de tristeza. Ainda penso. Porém, se era inteligência ou não, isso é coisa que fica pra outra vida a gente descobrir, já que agora é passado mais tempo que a vida inteira dum animal eqüino e num tem mais jeito de conferir. Deus queira que a Penada hoje paste grama num céu reservado só para os cavalos e éguas que foram bons aqui na Terra, e se tem uma coisa que ninguém pode negar é que a Penada era animal de boa índole. Dócil que só! Ela nunca reclamou quando os moleques trepavam no seu lombo, empoleirando até seis abusados por vez! Debaixo de sol quente ela troteava mansamente rumo a baixada da serraria. Parece até que a éguinha sabia que aquele peso todo seria descarregado na beira do corguinho, onde ela poderia beber água fresca e até abocanhar uma beirada da lavoura de milho do Jorjão, que além de plantar o milho também serrava madeira e, por conta da ocupação na serraria, cuidava pouco da plantação nem ligando para o prejuízo que a Penava dava. Talvez fosse por conta de miúda que só Penada era, cabia pouco da plantação no bucho da coitada. Não sei, por isso nem vou afirmar que sim nem desdizer que não, só vou dizer que sobravam uns belos nacos de folhas de pé de milho, coisa que esses meninos do videogame nem devem conhecer. Devem pensar que milho é feito nas industrias e só existe dentro de latas em conserva ou em saquinhos congelados no mercado. Mas deixo para comentar esses desconhecimentos outra hora, que preciso falar do banho da molecada.

O banho durava pouco tempo, que as mães nunca gostavam quando a tropa de gente miúda, arreliando a éguinha também miúda, descia a ladeira da serraria pra refrescar a cabeça e o corpo no córguinho. Diziam que dava doença, mas doente mesmo ficava quem era pego desprevenido na saída sorrateira e ficava impedido de nadar naquele dia - coisa de mãe e que a gente também nunca vai entender nessa vida. A estratégia para disfarçar o molhado das roupas no banho proibido era subir a ladeira puxando a Penada pela corda, assim dava tempo de secar os calções encardidos. E se era divertido nadar aquelas águas, a brincadeira só se completava lavando também a Penada. Era famoso que ela não gostava nem um pouco do banho, e também era sabido por todos que a maior judieira que a meia dúzia de pirralhos se permitia aprontar contra a Penada, era arrastar a coitada para o leito do córgo - os menos entendidos teimam em dizer que é córrego. Virava um furdunço de água pra todos os lados até que a gente molhasse a égua inteirinha. Se durante a algazarra alguém atravessasse a pinguela e pensasse que a brincadeira da gente era só lavar a égua, até que não se enganaria tanto, no entanto a gente estava lavando também era a Alma. Acontece que a égua não tinha dono, propriamente conhecido, e já que vivia zanzando pelo cemitério não demorou muito pra ganhar o nome de Alma Penada. Mas a gente chamava só de Penada e economizava palavra.

Pois então, era essa a história que eu queria contar! É só uma das tantas lembranças de felicidade que carrego desde a infância, eu precisava escrevê-la para continuar viva quando o tempo limpar minha memória. Não sei se contadas dessa maneira minhas zoeiras de menino continuam interessantes, pode ser que escrevendo eu não faço entender, mas também, como já deixei antecipado desde o segundo parágrafo, fica mais fácil mostrar brincando que mostrar explicando.

 
 

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