A ALMA INUNDA
Ana Luísa Peluso

Não posso lavar a alma, por mais que o conselho sugerido me atente para tal. Imperecível e imutável, a alma não aceita ser lavada. Diz que está cansada e velha demais para tomar banho. Que o tempo se encarregou de mantê-la limpa, apesar da imundície dos pensamentos e das ações. Eu, cá pra mim, penso que a rebeldia da alma foi quem me colocou nesse labirinto sem fim que é a vida. A rebeldia: aquele ente sem rumo. Meu olhar vai do pastor e sua bíblia para a janela com grades. Ele parece me compreender, pois baixa os olhos. Sabe que as paixões nunca fizeram bem à alma, mas se cala. Agora é tarde; a alma já foi lavada em outra ocasião e começo a pensar que ele usou muito mal o termo. Ele também se dá conta disso, noto, pelo silêncio que subitamente se instala entre nós.

O irrecuperável tempo perdido, o sarnento cachorro da vizinha, a árvore onde costumávamos nos sentar embaixo, o namoro, a noite de núpcias, a briga do casal em frente, nosso primeiro filho; tudo isso me vem à mente em menos de um segundo. O pastor continua calado. Ele conhece meus pensamentos, mas nunca saberá dos meus desejos e nem os acolheria, se soubesse. 

Ainda sinto vontade de dizer a ele, que, por lavar a alma uma única vez na vida, me encontro aqui; no mesmo lugar aonde ele vem me visitar todas as semanas. Mas me contenho. Certamente ele não tem culpa por minhas paixões e pelo que elas são capazes de fazer. E lavar a alma não é exatamente algo que mereça minha atenção, nem a dele e nem a de quem ele diz representar. Se a alma pudesse ser mesmo lavada, a minha estaria branca. 

Olho para o pastor; suas mãos unidas, apoiadas nos joelhos e seus olhos baixos me dizem que deve estar em oração. Penso na última vez em que fiz uma oração em minha vida. Já vai longe, o dia. Já vai tão longe qualquer possibilidade de retorno, que abandono o pensamento imediatamente. Não quero orar, não quero lavar a alma, não quero nada que seja impossível. E decididamente o possível é inevitável e o impossível, ponderável; por isso temo. Temo mudar de idéia e deixar que me iludam novamente quanto à natureza humana. A mesma natureza humana que abriga a alma. A alma que não vejo; que não sinto, mas inunda meu corpo. Tudo o que resta com vida em mim mesmo é um pouco de carne sobre os ossos e a barba por fazer. O pastor se levanta. Chegou o momento de ele ir embora como todas as semanas.

Eu me deito, sem vontade, na velha cama. A cabeça pesando mais do que o mundo e todas as perguntas sem respostas pairando em torno dela. Não há espaço em torno de mim que não esteja preenchido com algum pensamento vão. Como todos. Como sempre. Todos sujos, imundos e vãos. Penso na impossibilidade de cumprir a sugestão. Como se fosse possível! Como se fosse... 

Não lavarei alma, nem o corpo. Sou um homem cheio de paixões, com pensamentos cheios de desejos, olhos errantes e língua sem sabor. Os pensamentos continuarão sujos e a alma inunda meu corpo com sua existência transparente, apenas, enquanto respiro.

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