ESO DE CREAR YO NO ME LO CREO
William Stutz

Loucos jovens em viagem para a capital portenha para fazer um curso de composição. O ano, 1975. Nosso cicerone, ninguém menos que o grande coreógrafo Oscar Araiz .

A Argentina passava por momentos duríssimos, sua frágil democracia indicava golpe. Fomos de ônibus, cinqüenta e sete horas de viagem. Além dos onze pretensos bailarinos, apenas um chileno, que recitou Neruda a viagem inteira, ia em busca de sua família, pois havia fugido de seu país depois da queda de Allende. Mal sabia o que lhe esperava.

Depois de Paso de los Libres, bateu o cansaço. A monotonia da paisagem dos pampas quase nos matava de tédio, só a cor dos bois mudava - dez quilômetros de bois vermelho-e-brancos, dez quilômetros de bois preto-e-brancos, dez sem bois, e começava tudo de novo.

Em Rosário, os primeiros sinais do "Grande Paro" convocada pela CGT - tropas nas ruas, pessoas sendo revistadas - cenas do gueto de Varsóvia. "Nazistas", sussurrou o chileno, com os olhos úmidos/cerrados.

Entramos em Buenos Aires à noite. Cheiro de peixe e fumaça iluminada, esta foi a primeira impressão. O movimento das ruas não lembrava, naquele dia, clima de tensão, famílias inteiras lotavam restaurantes e calçadas.

Falsa paz, bastou jogar as malas no pequeno quarto de hotel para sermos advertidos pelo gerente: "O Grande Paro começa amanhã, por favor comprem comida, pois não servimos refeições e o que temos é para nosso próprio consumo". Quilos de frango assado e pão preto.

Uma semana de hotel e saídas furtivas para comprar cigarro (Gitanes ou Jokey Club , único tabaco ainda disponível). O consulado brasileiro nos orientou a deixar o país. Não sem antes conhecer o Teatro Colón, era nossa condição única.

Curso não houve, mas, às escondidas, peguei o metrô - fui a San Telmo e, sentado em um banco do parque, bebi vinho, fechei os olhos, senti um frio contato na fase e, emocionado, percebi: nevava na capital portenha.

Buenos Aires envelhecia dentro de um armário. Sua expressão juvenil era mentira. Nunca mais voltei. Nunca mais vi o chileno apaixonado, leio pouco Neruda e às vezes ouço longe a canção:

"¡Tus párpados abiertos son pétalos de rosas
que ofrecen dos luceros a mi desolación!"

Araiz, ao se despedir de nós, sussurrou: "Eso de crear yo no me lo creo"

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