ZAP
Nelson Moraes
No começo já vinham - quem, tia Marcela?, a chatinha da Lila?, o primo Conrado? - com aquilo de atributo místico, paranormalidade; eu mesma achava uma diversão. Até porque só acontecia de vez em quando, e, claro, lá vinha todo mundo me tachando de irresponsável por não saber ou querer explorar aquilo. Para quê, meu Deus, se eu me divertia tanto com a coisa - já não era o bastante? "Fica igual quando a gente vai zapeando a tevê, é?", perguntou uma vez a Michele, e não é que foi aquilo mesmo que eu adotei como uma - ou a - comparação definitiva? Igual à gente zapeando a tevê: é, Michele, eu disse, num minuto eu tou te vendo, aí fecho o olho e não vejo o escuro, vejo o que acontece no quarto do lado, ou no outro lado da cidade, ou em outra cidade. Aí abro o olho e te vejo. Não, quem escolhe as cenas não sou eu. Começa com uma dormência no rosto. Às vezes é com gente conhecida, às vezes acho que conheço, tem vez que não. Depois é só confirmar - as cenas tinham acontecido daquele jeito mesmo. O primo Conrado, já mais velho e ainda sisudamente explicativo: "Você tem uma espécie de tela na parte interna da pálpebra". Que tela o caralho, eu lá ia querer estragar a brincadeira? Eu assistia à aula: no ponto em que ficava chata era só esperar a coisa vir - a dormência - e eu fechava o olho: cenas no shopping. Olho aberto, o professor falando; olho fechado, a Michele e as amigas no piso dois; olho aberto, o professor soletrando di-ti-ram-bo; olho fechado, a Michele, as amigas e aquele cara maravilhoso na lanchonete do shopping; olho fechado, o professor me perguntando o que era ditirambo e a classe toda torcendo para eu não saber; olho fechado, que carinha lindo esse amigo da Michele, sol asteca tatuado no braço. Depois sumiu - a coisa, não o carinha. Márcio. Primo Conrado, agora escritor e estudioso: "Esses fenômenos têm disso mesmo. Às vezes embotam por um tempo". E eu achando que ele - o primo Conrado - tinha desde sempre uma queda por mim, e deixava vazar de viés com esse palavrório científico. Márcio. Uma vez saímos a Michele, ele e as meninas; outra, ele a Michele. Outra, eu ele. Depois outras, só nós. Meses, e nada da coisa aparecer. O Márcio e eu transando: fechei o olho mas nem assim a coisa veio. Nem nessa hora, poxa?, pensei, passando a mão no sol asteca. Campos floridos, rios cristalinos, lagos misturados com o céu?: nada. Vai ver tinha ido de vez. O Márcio me pedindo em casamento. No dia do Chá-de-Panela, a Michele, que tinha organizado tudo, ficou doente. Depois a tia Marcela caiu da escada e quebrou o pé. Não foram: que tal, além de ter perdido a coisa agora eu era pé frio? Na festa fiquei ouvindo Adriana Calcanhoto e tomando Jack Daniel's pra agüentar a conversa chata da Lila - e pensando muito rapidamente no que estaria imaginando o primo Conrado naquele exato instante. Aí é que veio a dormência no rosto. Não, devia ser o Jack. Não. Não era o Jack. A tevê zapeando: olho aberto, a Lila. Olho fechado, quem? Nebuloso. Olho aberto, a Lila. Olho fechado, já dava pra ver alguém. Olho aberto, Lila. Olho fechado, alguém conhecido. Olho aberto Lila - me olhando estranho, pelo meu jeito de piscar. Reconheci, reconheci e mantive o olho fechado. Michele. Deitada: sarando? Olho aberto, Lila. Fechado, Michele - eu torcendo pra ela estar melhorando e vir me encontrar. Que festa chata. Olho aberto, Lila. Olho fechado e meu Deus. Meu Deus. Meu Deus. Ele. O sol asteca, suado, se contorcendo, ao lado da Michele. Beijos. Abraços. Olho aberto, a Lila: "Que foi que você ficou pálida?" Olho fechado. Senti a pálpebra ir se molhando por dentro, tornando a embaçar a cena, os dois deitados, se abraçando e se misturando à água do meu olho. Olho aberto, a mesa virada. A festa acabada. A garrafa do Jack jogada na parede. Quando cheguei em casa e me tranquei no quarto a pálpebra já voltava a mostrar tudo escuro. Tudo escuro pra mim. Amanhã - assim que acordar, que abrir os olhos - ligo pro primo Conrado.
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