A MELHOR MENTIRA 
Mairy Sarmanho

Olhou para o corpo do pai sobre a cama, o lençol sujo de sangue, o pijama com um buraco da bala que lhe arrancara a vida e pensou em como eram errados seus valores. O pai fazia parte da história, fizera sua parte durante o tempo que dispôs nessa existência, havia mudado muitas coisas, ajudado muitas pessoas, renovado a esperança e a fé de toda uma nação. O pai era a história e isso nada iria mudar. Nem ninguém. Ele, entretanto, era algo descartável, incoerente, instintivo, totalmente imaturo e imbecil. Um ser desprezível que havia arrancado , num momento de ódio, a vida de um homem tão importante e necessário. Pensou nas conseqüências de seu ato, a revolução que aquilo poderia gerar, o julgamento, a condenação e da marca fatal que seguiria, dali para frente, toda família. Havia condenado muitas gerações ao desprezo, a chacota, a maldição de ter destruído uma lenda. A mãe morreria de desgosto. Os irmãos seriam afastados de todos os seus sonhos e ele seria tratado como escória que era. 

Sabia que o preço a pagar era alto demais para todos.

Imaginou o que o pai faria em tal situação. Ele sempre sabia encontrar uma solução digna e plausível para tudo. Sempre tão íntegro. Tão justo. Correto. Respirou fundo e pediu ajuda para o homem morto sobre a cama. O homem que ele mesmo havia matado. Não questionou a crueldade de seu ato, apenas tentou imaginar o que fazer para evitar danos ainda maiores. Se deixasse tudo ao acaso, o nome da família seria coberto de lama e seria sinônimo de parricídio. Não podia permitir que isso acontecesse. A briga que tivera com o pai não deveria ter tido tão estrondosa conseqüência. Deveria haver terminado como todas as outras: uma desculpa com pedido de perdão. Não compreendia o porquê de seus olhos tem encontrado o revólver ao lado da cabeceira, nem o porquê de suas mãos terem empunhado uma arma de fogo e disparado contra aquela figura que ele venerava tanto. Deus sabia que nenhum filho amava mais ao pai do que ele. E não podia compreender por que Deus havia permitido o crime.

Tinha raiva de si mesmo. Desprezo. Não valia sequer uma gota de sangue. O sangue de seu pai.

Chaveou a porta e datilografou uma carta com as palavras de seu pai. As palavras que, tinha certeza, ele diria numa hora desta de pura despedida.

Estava acostumado a linguagem daquele advogado paternalista e aos discursos solenes que acompanharam sua infância. A voz dele costumava ser confundida com a voz de Deus. Talvez fosse. Nunca iria saber, porque já não tinha mais direito de ocupar um espaço no céu. Estava certo de que apenas o inferno seria o caminho. Não adiantava pedir perdão por que nem Deus o perdoaria.

Usou um papel com uma assinatura prévia que o pai, por previdência e precaução, havia deixado no cofre. Escreveu a carta que seria lida a cada ano no aniversário de sua morte e a cada vez que o povo sentisse a falta daquele homem tão humano e tão especial. Não era apenas o seu pai. Era o pai de todos. Mas ele, filho cruel, o havia matado. Havia sujado seu pijama e manchado a dignidade de toda uma linhagem. Não merecia estar no enterro. Mas deveria fazê-lo. Simulou o suicídio do pai para que outros tantos não pagassem por seu erro.

Quando a mãe entrou no quarto e começou a chorar, mentiu.

Quando anunciaram a morte do pai e leram a carta de despedida, mentiu.

Mentiu quando afirmou desconhecer os motivos que levaram a isso.

Apenas não mentiu quando chorou em seu enterro. Gostaria de ser esquecido e de poder tirar de seu nome, o nome do pai. Mas não podia. Isso seria interpretado de forma errônea. Teria que conviver com o remorso, a culpa e a dor de haver destruído a única pessoa a quem admirava. Teria que conviver com espelhos, fotos e reportagens ocasionais. Nunca contou o ocorrido.

No dia em que se matou, muitos anos depois, lembrou-se de que não havia fechado as pálpebras do pai. E que havia sentido aquele olhar lhe desmembrar a alma, numa promessa de vingança futura. Mas o pai não se vingou dele: foi ele mesmo quem o vingou.

As pálpebras do pai se encontram abertas dentro da alma, apesar da mãe as haver lacrado com suas lágrimas de saudades e tristeza; apesar dos irmãos as terem lacrado com suas lágrimas de medo e revolta; apesar do povo as terem lacrado com suas lágrimas de desesperança e abandono. Um filho não pode perdoar o assassino do pai. Nem mesmo se for ele próprio.

Isso ele sentiu na hora que em que puxou o gatilho pela primeira vez e pela segunda, quando apontou para o seu próprio coração. Terminava assim uma jornada que apenas os que sabem da verdadeira história são capazes de compreender. Porque a verdade tem inúmeras versões para o mesmo crime: e a que vale é sempre a mais digna. Ou a melhor mentira!

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