A
noite foi entrando aos poucos, e logo a sala era invadida por uma penumbra
cálida, como um gato gordo que se deita sobre nossos pés. As primeiras
estrelas jogavam beijos brilhantes. Início de verão, uma algazarra de
insetos em vôos de acasalamento. Godofredo achou melhor fechar a janela.
O brilho das estrelas, o namoro dos pirilampos, tudo aquilo acelerava
sua bile, deixava sua boca ainda mais amarga, se é que isso era possível.
De passagem pela cozinha, deitou três dedos de Água Tônica num copo
e jogou dentro um punhado de Sal de Frutas. A mistura tenebrosa pareceu-lhe
levemente adocicada. Em breve sentiria o ventre inchado de gases, e
a seu bel-prazer, silenciaria a festa dos insetos, e faria murchar o
brilho das estrelas.
Deitado no sofá, abandonou o livro ao fim do primeiro capítulo. Vinte
e oito páginas e nenhuma morte, aquele era um livro para maricas! Pensou
no seu passado, este sim daria um livro! Lembrou com saudades de um
tempo nem tão remoto, quando era voluntário num grupo paramilitar que
reprimiu os "vermelhos". Ah!, se pudesse escrever sobre isso... Estudantes
(baderneiros, isto sim!) metidos a reformadores do mundo, conheceram
seu devido lugar depois de passarem algum tempo confessando, por bem
ou por mal, o funcionamento dos grupos que tramavam a derrubada do poder
das baionetas. Por trás das pálpebras cerradas corria uma procissão
de imagens dos corpos pendurados no pau-de-arara, jacarés de metal mordendo
peles sensíveis enquanto a manivela do choque era girada. Sentia falta
daquilo, daquela excitação! Poças de excrementos e urina se formavam
sob os cavaletes. Às vezes, um exagero na dose, uma parada cardíaca,
e toca simular um combate ou um atropelamento ou um suicídio. Mas isso
era raro, e no mais das vezes bastava arrastar de volta à cela um corpo
quebrado pelo castigo, e prometer antes de fechar a porta: - Amanhã
tem mais.
Não queria abrir os olhos, para manter o tempo aprisionado dentro do
seu olhar escurecido. Se abrisse os olhos daria de cara com a falta
da mulher, talvez até ouvisse sua voz se queixando do seu humor incandescente.
O Torquemada do asfalto se deleitava com a própria fúria. Por vezes
pensava abandonar tudo e se enfurnar no mato, um sitiozinho na beira
de um rio... Mas a paz é fruto de delicada arquitetura interna, e o
mais provável seria a transmutação da neurose urbana em idiotia rural.
Se ele soubesse sorrir não estaria sozinho, mas sorrir era para os fracos,
os mulherzinhas, os bêbados. Ele tinha um codinome a zelar. Nos porões
do sistema foi conhecido como Dr. God. Senhor da vida e da morte, dono
da verdade, da sua verdade, a única que importava. Por detrás daqueles
olhos cerrados a vida ardia em festa.
Amanheceu,
mesmo contra a vontade do Dr. God. Era domingo. A praia deveria ficar
cheia de corpos semi-desnudos. Godofredo gostava de sentar na areia,
escolher alguém, homem ou mulher, não importa, e imaginar como reagiria
sob seus cuidados. Quanto tempo aquele agüentaria na porrada... Como
aquela enfrentaria o estupro... Ia sempre com uns calções folgados,
para que ninguém notasse sua ereção.
Antes de deixar o prédio, conferiu cuidadosamente os arredores. Em seguida
deu de ombros: olha a paranóia, meu velho, olha a paranóia! Pôs os óculos
escuros e saiu em direção do bar da esquina. Longe, alguém ligou o motor
de um carro, e saiu lentamente do meio-fio, confundindo-se com os outros
carros estacionados, como uma cobra deslizando por entre pedras coloridas.
Godofredo tomou um café puro e acendeu um cigarro. A língua grossa e
amarelada tinha gosto de fel. Começou a atravessar a avenida. Quando
estava no meio da rua já era tarde demais. Olhou para o lado esquerdo
justo a tempo de ver um rosto furioso atrás do pára-brisa. Tentou lembrar
de onde o conhecia, mas não teve tempo. Foi atingido em cheio, e arremessado
para o alto. Antes de cair retorcido no asfalto já estava sujo de urina
e excrementos. O carro não parou, ninguém anotou a placa. Uma roda de
curiosos cercou o corpo. Como se lhe adivinhasse a vontade, alguém se
ajoelhou e cerrou-lhe as pálpebras. Inútil. Contra a vontade do Dr.
God, o sol continuou a brilhar.