QUE SONO!
Lena Chagas

É da minha natureza; não resisto. Desde muito cedo percebi que é mais forte que eu. Deixo que tome conta de mim e me leve sempre que quiser. Estou sempre pronto aos seus mandos. 

Gosto de ver sua chegada. Sem aviso, sem motivo nem horário. Sutil, mas marcante, chega devagar, entorpece meu corpo todo e se instala. Só minhas pálpebras, teimosas, é que insistem. Mas não por muito tempo. Logo, logo, desabam! Capitulam. E ele reina. Absoluto. Profundo. Quase mortal. 

Sou "bem-nascido", dizem as más línguas. Outras, piores, usam adjetivos pesados. Diria até obscenos. Mas não me incomodo. Assumo a minha condição e até tenho orgulho dela, sem culpas. Gerações e gerações de grandes caçadores deixaram suas marcas na história da família, lutando pela sobrevivência. 

Vivemos em outros tempos e eu não tenho culpa se as coisas mudaram. Falando a verdade, eu nem contribuí para isso. Quando cheguei, encontrei tudo pronto: casa-comida-e-roupa-lavada. Fazer o que, se nem lutar pela comida, eu preciso? Aliás, o último parente meu que fez isso, morreu envenenado. Nossa comida predileta não é mais confiável. Resta confiarmos nos industrializados e na boa vontade do nosso dono! 

Não me queixo. Confesso que a luta corpo-a-corpo não me atrai, nem um pouquinho. É cansativa e desgastante (dizem!), além de arriscada! Embora eu nunca tenha sentido isso na pele digo no pêlo, tenho noção do que seria perseguir a comida e matá-la para depois comer: uma briga de gato e rato! Muito obrigado!

Prefiro a modernidade e todas as suas vantagens: comida pronta em hora e lugar certinhos, sem correria; cama e pratos limpos todos os dias; ar refrigerado no verão e aquecido no inverno. 

Há quem lamente a falta de aventura, o ócio e a vida sedentária. Não é o meu caso. Adoro a vida contemplativa, o ver passar da carruagem e o ladrar dos cães (bem longe, de preferência!). Nada que exija algum esforço meu, nada que me impeça de desfrutar do sono quando ele se avizinha. 

Bem... 'nada' não é a palavra exata. Tenho de dizer 'quase nada'. Afinal, nem tudo é perfeito: meu prato fica muito longe da minha cama! 

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