PÁLPEBRAS
Lauro Lima
Não era para ser assim tão rápido. Quem sabe se lhe tivesse baixado um espírito, capaz de transformar em palavras todas as confusas emoções que sentia? Bem que tentou organizá-las antes de telefonar, mas, ao ouvir a voz doce e suave do outro lado, quase sussurrando em seu ouvido, perdeu completamente o tino. Ao invés de cumprir o plano de ir, pouco a pouco, falando das coisas práticas, deixando perguntas no ar que ela tivesse de responder e, assim, ganhar mais tempo, não conseguiu vencer o inebriante prazer de ouvir-lhe a voz. Bastou ela dizer, lá longe e, ao mesmo tempo, bem dentro de seu ouvido ..."meu querido"... para ele esquecer todo o planejado. Suas pálpebras fecharam-se imediatamente, em busca da possibilidade de reter aquele momento para além da eternidade. Era como um vinho raro, excitando as papilas, escondendo e mostrando segredos, trazendo memórias e fantasias de futuro.
Repentinamente o silêncio do outro lado transformou-se em agulha fina. Ela estava esperando que ele dissesse alguma coisa. Mas dizer o quê, afinal? Não conseguia lembrar de nada, inteligente ou suficientemente coerente, para dar seqüência à conversa. Ao mesmo tempo precisava dizer alguma coisa, sob pena de ouvir um "então tá bom, depois conversamos". Arriscou a primeira coisa que lhe veio, vagamente, à mente ..."e como está o tempo aí?". Imediatamente percebeu que a manobra não lhe garantiria mais que alguns segundos. Precisava pensar rápido, emendar o assunto do tempo com algum outro capaz de render longos minutos de conversa. Se conseguisse, aí sim poderia tornar a deixar as pálpebras se fecharem e voltar a mergulhar no mundo das impossibilidades, viajando nas palavras, ao mesmo tempo concretas e cheias de significação, pelo menos para ele.
Nem houve tempo de encontrar um novo assunto. Do outro lado alguém a chamou. Ele até que teve um pouco de esperança quando ela disse ..."espere um pouquinho"... provavelmente colocando a mão sobre o bocal do telefone. Era sua última chance, decidiu. Quando retomassem a conversa diria, de chofre, tudo o que estava sentindo, mesmo que ficasse confuso, sem sentido, mesmo que ela não entendesse de imediato. Engoliu em seco e pigarreou, preparando-se para o momento fatal.
Não teve tempo de dizer nada. Quando ela voltou a falar foi para dizer ..."Me liga depois, surgiu um probleminha aqui que preciso resolver, tá?... Limitou-se a responder um desalentado "tá bom... outra hora te ligo"... e ouvir o clique do fone sendo colocado no gancho.
Suspirou fundo, fechando os olhos outra vez. O fone, agora mudo, ainda encostado displicente sobre a bochecha. "Meu querido"... "meu querido"... as palavras mágicas continuavam ecoando em sua mente, em seu ouvido. Queria ficar naquele mundo de ilusões um tempo indefinido. Só tornar a abrir os olhos diante dela, no momento em que sonho e realidade, enfim, se encontrassem.
Conseguiu muito pouco. Um barulho qualquer, relativamente próximo, fez suas pálpebras abrirem-se automaticamente, trazendo-o de volta à realidade. Irritou-se ao ver que o gato derrubara um vaso de plantas e já corria a se esconder sob o sofá. Expulsou-o para o quintal. Queria ficar absolutamente só, sentar-se na poltrona, fechar as cortinas dos olhos que separavam o real do sonho e navegar... navegar... navegar.
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