BAÚ DO TEMPO
Juraci

Se martiriza ao abrir o baú de couro. Examina-o peça por peça. Um colar aqui, brincos ali, uma anágua de renda feita à mão, o vestido de noiva, um álbum. Álbum que trazia recordações, cenas antigas, marcantes. Páginas já amareladas como o branco do vestido.

Lu reviu cada passagem, lembrava de todas, até do papagaio. Deste, tinha mágoa, uma grande mágoa. Semicerrou as pálpebras para afugentar a cena que mais nítida ficava. Fora culpa do papagaio. Lamentava.

Naquele dia, pai e visitante sentaram no banco de madeira bruta, na varanda, para papear. Proseavam. Nos intervalos, um café grosso, um cigarro de palha, um pigarro na garganta. Inesperadamente, o rapaz levantou meio sem jeito, cortou o assunto e trovejou o pedido:

- Gostaria de pedir a mão da Lucinda em casamento.

O pedido caiu como uma bomba. O cof cof denunciava que a tragada mudou o percurso normal. O café pulou da xícara que tremulava, manchando a calça de brim surrada mas, ainda domingueira.

- Luuciinda! - disse, limpando a mancha úmida com a mão e disfarçando o espanto.

- Sim, Lucinda! Preciso me casar e daqui da região, é a única que me agrada. Moça direita, bem criada, de família - dizia fazendo média.

- Ela só tem quinze anos, precisa de muito aprender.

- Sabe o necessário. Minha mãe casou-se com quatorze e é uma perfeita dona de casa.

O silêncio pareceu longo demais . O velho procurava uma outra saída:

- Como fica essa casa sem mulher? A mãe, cedo se foi e não pretendo casar novamente.

- Ela pretende.

Ulisses tentava levar a prosa para um diálogo tranqüilo, sem espantar, distanciar seus objetivos. Vezenquando Lucinda, entrava na sala, trazia café novo, água fria, fósforo e até palha de milho para o pito. Não sabia que estava na berlinda. Um rabo de olho e só. O mancebo a comia com os olhos. Moçoila de ancas roliças... seios redondos e firmes faziam seus desejos avolumarem. Precisava do consentimento do vetusto para iniciar o namoro. E logo, antes que outro o fizesse.

- Lucinda! - o pai chamou: - O rapaz aqui - apontou com o queixo duro - está pedindo a sua mão. O que você acha disso?

A resposta demorou um século. Lucinda -  de olhar fixo no chão batido e mãos cruzadas para trás - tremia. Era a primeira vez que o pai falava sobre casamento com ela. Anda por cima, na frente de estranho. 

- Temos que nos conhecer primeiro, eu acho. O coração é quem sabe.

Não era essa a resposta que esperava ouvir da filha. Pensou que sairia correndo da sala, com uma negativa. Deixou-os a sós para se entenderem. Poucos sozinhos se repetiram. Casariam. Marcaram a data para bem próximo. 

Num desses dias sozinhos, traçando planos sob a frondosa mangueira do quintal, papagaio lá de cima borrifou bem na cabeça do rapaz. Limpou com o lenço ignorando o fato. Lucinda fingiu não ver mas, se pudesse torcia o pescoço do papagaio.

"Já deu, já deu, já deu". O bordão era repisado pelo pássaro.

O papagaio falava, o noivo emudecia e Lucinda ruborizava.

"Já deu, já deu..."

Ulisses interpretou à sua maneira machista e foi sem se despedir. Nunca mais voltou. No baú, o vestido ficou a esperar o momento da entrada triunfal. O rapaz não sabia que o louro se chamava Jadeu.

fale com a autora

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.