DIÁRIO DO HOSPITAL
Fernando Borba
03 Set. - Quando não atravessa a noite no plantão, a enfermeira Lucíola me saúda pela manhã com seu bom-dia e com um esbarrão do carrinho do café na porta do quarto. "Bom dia. Dormiu bem?" - "Como sempre, obrigado. Seria melhor se vocês pudessem apagar a luz do corredor." Meu pai tem vindo todos os dias, e ao ver a enfermeira Lucíola brincou comigo à sua maneira. Disse que era uma pena eu não poder namorá-la, pois não posso piscar o olho. É preciso esclarecer que no tempo dele o namoro começava estranhamente com piscadelas. Mas a boa notícia que ele trouxe foi sobre o pingador: vai estar pronto nos próximos dias. Meu pai reuniu um grupo de colegas meus e também seus alunos na Faculdade de Engenharia Mecânica, e eles bolaram um aparelhinho revolucionário. Para o modelo experimental, foram usados um obturador de máquina fotográfica, um temporizador e outras bugigangas. Basicamente, o pingador é um pequeno depósito de soro fisiológico que vai liberar uma gota sobre cada um dos meus olhos a um intervalo de tempo que eu posso regular, digamos, dez segundos.
06 Set. - Nunca pensei que a luz ininterrupta fosse tão reveladora. Nos breves momentos de sono, meus sonhos são enredos de sons, luzes e cores. Hoje acordei ouvindo uma cantata da bênção que os padres rezam quando encomendam defuntos: Requiem aeternam dona ei, Domine, et lux perpetua luceat ei - Descanso eterno dai-lhe, Senhor, e a luz perpétua o ilumine. Sinto-me como se me fosse envolver perpetuamente em luzes. Dor de cabeça. Secura constante nos olhos. Cansaço visual. As enfermeiras são muito gentis, revezam-se à minha cabeceira para pingar o soro nos meus olhos abertos, mas nada substitui a lágrima, a pontual lágrima que comparece a uma simples piscada.
08 Set. - Que menina maravilhosa, essa enfermeira. Além de competente é meiga, carinhosa. Quando demora a
aparecer, me faz falta.
09 Set. - O pingador foi testado há pouco. Funciona bem, do ponto de vista pingatório, por assim dizer, mas é incômodo. Sem contar que tenho de ficar quase imobilizado. E muitas gotas caem fora do lugar, molhando o travesseiro. Será que estou sendo influenciado por Lucíola? Flagrei uma espécie de ciúme na garota: ela minimiza o valor da geringonça, e prefere passar as noites pingando em meus olhos.
16 Set. - Marcada a cirurgia de implante para hoje à noite. Estou uma pilha. Lucíola percebeu, passou quase o dia todo comigo, burlando a vigilância da chefe. Estive mergulhado em idéias negras. Idéias persistentes de morte. Conforme a corrente filosófica do solipsismo, o "eu" é a única realidade e todo o universo desaparece com a nossa morte. Quer dizer que ao morrermos, é como se morressem todos os outros e tudo em volta de nós. Então o filósofo diz: "A morte é um naufrágio em que submergem o barco e as águas." E sobre a supremacia da morte: "A vida nada mais é que a tentativa inútil de interromper a inexorável caminhada para a morte." Enquanto acariciava meu rosto, Lucíola me mandou afastar esses pensamentos, e aos poucos esqueci todo o pessimismo filosófico. Vamos em frente! Ficar bom, sair daqui, viver!
17 Set. - Parece brincadeira, uma piada de humor negro. Já todo amarrado na cama cirúrgica, com os tubos e demais trecos pelo corpo, o anestesista pronto para aplicar aquela picada destinada a embriagar o paciente, quando alguém deu o alarme: "As peças são brancas! O doador era branco! O paciente aqui é... moreno." Eu, na verdade, sou negro, um negro a que podem chamar de retinto. Ia ser engraçado, sem dúvida, um negão com duas chapeletas brancas na cara, mas talvez eu topasse. Até que pegava bem pelo carnaval. Toda a armação da cirurgia foi suspensa e me trouxeram de volta para o quarto. Doutor Lúcius, o cirurgião-oftalmologista, renovou minha inscrição na lista de pacientes para transplante. Passarei a aguardar a morte cerebral de um negro cuja família seja compreensiva.
19 Set. - Fiz outra radiografia da cabeça. Doutora Luzinete garantiu que a fratura do osso frontal está quase consolidada. O acidente foi um caso raro: quando o motor do carro explodiu, um jato arrebentou o painel e algum detrito metálico atingiu minha cabeça, enquanto uma língua de fogo passou rente a meus olhos. Segundo a descrição médica, "os véus múculo-membranosos que cobrem os globos oculares foram atingidos, não sendo destruídos imediatamente mas dias depois, em decorrência de processo infeccioso." Minha visão ficou a salvo. Fui retirado dos destroços e levado a princípio para a Clínica de Queimados. Depois vim parar neste maravilhoso Hospital Santa Luzia.
21 Set. - A turma da Faculdade está aperfeiçoando o pingador. Vai ser dotado de sensores que acompanham o movimento da cabeça do paciente, ganhou novos suportes, teve seu peso reduzido e servirá para outras finalidades terapêuticas.
Incluíram médicos na equipe. Estão preparando o pedido de registro da patente, com o nome internacional de BASD - Brazilian Automatic Serum Dispenser. Pedi para que seja posto gratuitamente à disposição da Organização Mundial de Saúde, para uso humanitário.
24 Set. - Ah, Lucíola! Essa gatinha me mata!
26 Set. - O representante da OMS esteve aqui, a turma da Faculdade o trouxe para me conhecer. Afinal foi o meu caso que inspirou o BASD. Ele falou que o projeto será muito bem aceito pela entidade, pois é funcional, leve e de produção baratíssima. E que casos como o meu acontecem até com certa freqüência nas guerras. No momento, há quatro guerras em andamento e uma em preparo.
27 Set. - Todos dizem que a cirurgia é simples, é um serviço de costureira. Ninguém fala nos riscos, como o da anestesia geral superdemorada, por exemplo. Mas eu não temo o outro lado da vida, se é que ele existe. Tenho certeza de que fiz, deste lado, a parte que me cabe e sei que fui honesto, digno e solidário com os outros.
28 Set. - Ainda estou burilando uns versos que escrevi para Lucíola. Como é difícil escrever poesia, e ao mesmo tempo como é fácil sentir a poesia quando a gente está apaixonado... Êpa, que história é essa de paixão? Ih, cuidado, cara. Mas pensando bem, que machismo bobo é esse? Tô apaixonado, sim, explodindo de paixão! Em vez dos meus mal-traçados versos, vou registrar neste Diário outros bem melhores, que sei decorados:
"Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo / Quero apenas contar-te a minha
ternura. / Ah, se em troca de tanta felicidade que me dás / Eu te pudesse repor
/ (Eu soubesse repor) / Em teu coração vazio / As mais puras alegrias de tua infância!"
30 Set. - Um grande sol dourado de primavera acaba de bater em minha vidraça. Chegou o material para o implante, e a cirurgia será daqui a pouco. Talvez esta seja a última anotação em meu Diário. Estou muito calmo. Seja o que Deus
quiser.
Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.