PÁLPEBRAS CERRADAS
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães

Antônio, Tonho, Toinho, Toninho, tadinho. Trêbado e trôpego se arrastando pelos becos poeirentos da cidade, mendigando tragos, cumprindo sua sina. Soube que morreu - não iria longe levando aquela vida. Corpo de esponja encharcado, alma em frangalhos, farrapo humano. Tantos adjetivos amargos e uma mágoa que bebida alguma no mundo poderia afogar. Teimava. E bebia. Com o passar dos anos começou a diminuir as doses: não que quisesse pegar leve ou porque estivesse finalmente desiludido como os poderes anestésicos da malvada; mas porque seu organismo ficava cada vez mais fraco e não precisava de muito para se embriagar.

Teimava também em cantar embora isso, ao invés de espantar seus males, deixasse-o cada vez mais melancólico. Chorava e cantava sempre a mesma canção: Malagueña Salerosa. A alma em frangalhos na voz outrora vigorosa, definhara e virara um triste arremedo. Da marcante interpretação que lhe dera o segundo lugar no programa do Chacrinha no Rio de Janeiro anos antes restara apenas uma vaga lembrança. 

Por causa de um amor perdido, diziam, cantava que nem cotovia. E encantava. A dor da perda emocionando sempre. Convenceram-no a tentar um programa de auditório. Foi. E até que foi bem. A buzina do Velho Guerreiro silenciou em respeito àquela promessa. Resultado: segundo lugar. Conseguiu sonhar um pouco. 

Uma tarde, no Arpoador, nuvens negras sobre o Corcovado, seu mundo caiu. E voltou para casa mais amargo ainda bebendo além da conta, sem fama nem esperança.

Como num bolero , sua amada com outro fora embora. Restara-lhe a voz, o mar de mágoas e os bares .

"Tornei-me um ébrio", entregava-se, encarnando o personagem de Vicente Celestino. E, entre doses e lágrimas, cantava Malagueña:

Que bonitos ojos tienes, debajo de esas dos cejas
Ay mírame más, mírame así,
con tu mirada hechicera
Que bonitos ojos tienes, debajo de esas dos cejas

Traiu-lhe o amor feiticeiro, a voz, o fígado, a vida. Calou-se. As pálpebras cansadas cerraram-se debaixo das sobrancelhas tristes (párpados cerrados debajo de las tristes cejas), poupando seus olhos sem brilho de um último mirar. 

O corpo, garrafa vazia, descansou finalmente. Em paz. 

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