GILETE
E NAVAINHA
Doca Ramos Mello
Olhe só. A gente que é assim vivente comum, do povão mesmo, não atina com essas diplomacias. Mas eu arrisco palpites porque meu pai, que viajou muito por este mundão do país e foi até caseiro de gente fina em São Paulo, explicou muitos mistérios da vida p'ra mim, me esclareceu, de modo que eu mesmo meio que sou considerado nestas terras, respeitado nas minhas palavras nesta Vila de São João dos Remediados. De remediado propriamente dito, por aqui, só temos "seu" Genivaldo do Carmo, dono da fazendinha. Fazendinha eu disse? Modo de falar, chácara, isso sim, mas bota banca porque em terra de cego... Isso aqui é o fim do mundo de Deus.
Olhe que eu ia contando um conto e agarrei noutro ponto...
Pois bem, aqui nesta Vila, que por sinal é uma cidade pequena e faladeira, figura o seguinte: dois tipos de gente - situação e oposição. O resto é povão, que nem eu, que nem você, e povão não vale nada, salvo na hora do xis. Você vai lá, faz o xis e pode esquecer, do mesmo jeito que será esquecido, eu acho.
Pois bem, de novo. O prefeito agora é Gilete, portanto Gilete é situação, no momento. O nome dele de registro é Adamastor Pimenta Roco, mas pegou esse apelido ainda moleque, porque fazia dupla afinada com seu amigo Navainha, os dois umas pestes que ninguém queria ver por perto...
Bom, no começo da implantação do apelido, o velho Roco, bravo e macho, ficou possesso quando soube o que significava "gilete" em São Paulo, e eu sei que foi meu pai quem teve o disparate de contar com riqueza de detalhes para o homem a extensão da palavra - papai era muito culto. Então, "seu" Roco distribuiu palavrões e tapas, correu com muita gente que tocava no assunto, chamou p'ra briga, fez muito estardalhaço. Costumava mostrar a cinta para os amigos do filho que se divertiam indo até sua casa para gritar no portão: "Gilete taí, seu Roco?" E os atrevidos faziam fila para repetir a audácia, o velho se destemperando feito leão enjaulado.
Depois, Gilete já rapaz e sempre sacaneando uma legião de mulheres aqui de São João e da redondeza toda, inclusive Jandira Rosa, coitadinha, última virgem ingênua do planeta, de modo que "seu" Roco ficou mais sossegado. Ah, Jandira Rosa, pobre dela! Apaixonou-se perdidamente e entregou o ouro na primeira, ardendo de amor e despreocupada da prevenção. Resultado: bucho cheio, humilhação, tristeza e abandono - foi-se embora daqui sem olhar para trás, não era mulher de escândalos, era inocente mesmo.
Navainha nunca deixou por menos. Sempre se afiou no ofício de fazer filhos nas moças inocentes, nas desavergonhadas, nas espertas, nas safadas, nas bocós, nas iludidas, em todas que dessem bobeira. E todas só dando bobeira de penca.
Na farra, e porque nunca tiveram trabalho assim mais regular, francamente falando, sempre foram meio inúteis, fundaram um partido político e lançaram a chapa Gilete & Navainha, "a dupla mais afiada de São João". Foram eleitos prefeito e vice!
Hoje, Navainha milita na oposição.
Para quem possa imaginar que, hoje, Gilete e Navainha sejam inimigos políticos, explico que a trama não procede. Quero dizer, assim para o povão que nem eu, que nem você, possa até ser que aparente existir um quinhão de quizila entre eles dois, mas não. Longe disso. Eu já analisei bem e sei que eles fizeram uma espécie de pacto para exercer, com conforto e sem surpresas, aquilo que meu pai me contou que se chama "alternância de poder", de modo que alterna sem alternar, muda sem mudar, e fica tudo ótimo. Eles levam a vida assim porque a carreira política existe para favorecer o povo, é isso, daí que na última campanha um e outro só não chamou a mãezinha do concorrente de santa, de resto... Tudo pelo povo.
Porém, eu ando observando e noto que as coisas estão se movimentando e é tudo culpa nossa, do povo, pessoalzinho chato de lidar, e da vida, que decidiu ensinar a gente. Além disso, o tempo está passando, a água por debaixo da ponte escasseia, vejo que a ordem dos fatores quase ameaça o produto, tô dizendo, dia desses o sertão ainda vira mar, como sentenciou o poeta, olhe só... Num bater de pálpebras... Bum! Gilete e Navainha que se cuidem.
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