MORTO POR ENGANO
Claudio Alecrim Costa
Poderia ser herança, legado de família, conjeturava diante do espelho que refletia a luz tênue do banheiro. Havia um silêncio sepulcral em toda casa e não conseguia parar de olhar para minha cara. Minhas pálpebras estavam inchadas e escurecidas, o que me emprestava um ar funesto. Parecia uma daquelas personagens de filmes de terror barato que assistia na tv.
Arrastei meu corpo que sentia pesado até a sala e a tv estava fora do ar. As horas tinham avançado e eu perdia a noção do tempo. Larguei-me no sofá e olhei ao redor procurando uma resposta para existência tão mórbida.
Não tinha fome e não me passava coisa alguma pela cabeça. Minhas lembranças resumiam-se ao espelho e pálpebras escurecidas. O que estaria acontecendo?
O telefone tocou me pondo de pé como um soldado.
- Alô.
- Alô...Você está pronto?
- Quem fala?
- Malaquias. Sou encarregado de levá-lo dessa vida...
- Isso é um trote?
- Você está tecnicamente morto... Preciso passar por aí e levá-lo...
- Espera aí! Morto está a sua...
- Nada de ofensas... Não agüento mais isso...
- Outros candidatos a mortos são agressivos?
- É duro demais. Outro dia tive que escutar vários impropérios...
- Mas eu morri de quê?
- Isso é com outro departamento... Eu apenas levo os mortos...
- Existe um telefone para reclamações?
- Reclamações não funcionam nesse horário...
- E meus direitos? Quero dizer, estaria correto morrer agora...?
- Eu lamento...
- Você passa aqui?
- Tudo acontecerá naturalmente...
- Nunca morri antes... Queria estar preparado...
- Coloque uma música e beba algo...
- Não é uma má idéia...
Coloquei um disco pra tocar e me servi de uma dose de uísque. Não era tão complicado
morrer... Sentia-me bem até. Dei uma ávida golada enchendo a boca, pronto para a partida derradeira.
Já era dia e eu permanecia sentado no sofá... Devia ter dormido. Mas e minha morte? O telefone tocou novamente.
- Aqui é Malaquias...
- Já sei...
- Espere um pouco...Houve um engano.
- Como assim?
- Estamos adiantados 20 anos...Não é a sua hora.
- Me dê o telefone para reclamações...
- Não faça isso. Serei punido.
- Não me interessa... Poderia ter morrido! E o constrangimento. Vou acionar um advogado...
- Por favor...
- Você sabe jogar pôquer?
- Não...
- Não importa... Passe aqui e eu te ensino...
- Posso ser punido por isso também...
- É minha condição... Quero conhecer o sujeito que me levaria pro andar de cima. Tenho cervejas e umas vizinhas legais.
- Fechado... Mas isso fica entre nós.
- Combinado!
- Passo aí lá pelas 9 da noite.
- Estarei esperando.
Fui até o banheiro e minhas pálpebras continuavam escuras e inchadas...Minha avó tinha as dela assim também. Era de família, pensei com um alívio jamais sentido.
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