VELEJADA DE TRAVÉS
Carlos C. Alberts

Chegou na marina de cabeça baixa. Pensativo. Ao aproximar-se da margem da Lagoa levantou os olhos e viu a bela paisagem. A água esverdeada, iluminada pelo sol das cinco da tarde que batia em suas costas. Nuvens cinzentas e escuras à frente, fazendo um contraste opressivo. A água estava picada devido ao vento Sul. Sabia que não iria chover antes das oito ou nove da noite. Conhecia o tempo naquela região. Um marinheiro tinha obrigação de conhecer o tempo. Mas, por causa do aspecto ameaçador, a Lagoa estava deserta. O melhor momento para velejar.

Puxou o velho Dingue do pai até a beira da água. Felfer (isso lá é nome pra barco?). Encaixou o mastro e firmou o cabo correspondente. Atou a retranca ao mastro com movimentos precisos mas sem pressa. Rizou a vela. Encaixou a bolina e o canote do leme. Verificou a poita e o remo de segurança. Olhou para a fita vermelha no alto do mastro. Ela sinalizou que o Sul estava forte e constante, sem rajadas. Empurrou o casco para dentro da água, até que a quilha não tocou mais o fundo. Movimentou o pequeno veleiro mais uns dois metros e pulou para o convés. O vento vinha de bombordo. Caçou o cabo da vela e abaixou a bolina. O primeiro movimento esticou a vela, aumentando a velocidade. O segundo aumentou a área da quilha, forçando o barco a navegar para frente, não de lado como queria o vento. Velejada de través. O vento vindo lateralmente ao barco. Sempre foi seu vento preferido. Gostava também do vento de proa, que vinha de frente. Para avançar precisava bordejar, navegar em zigue-zague, até atingir o destino. Nunca gostou muito do vento em popa, o que vem pelas costas. A velocidade é maior, mas o barco parece parado. Navega-se na velocidade do vento e isso dá a ilusão que se está estático. 

Caçou ainda mais a vela e o barco adernou, quase tombando. Fez um movimento com o corpo no sentido contrario, segurando o cabo e o canote do leme. O barco se estabilizou adernado, numa velocidade muito alta. Estava quase feliz. Mas não queria esquecer o porque de ter ido até ali. A uns oitocentos metros da margem, liberou a vela devagar. O barco voltou à posição normal, diminuiu a velocidade e finalmente parou. Baixou a poita, ancorando.

Olhou em direção à marina. Três graus à esquerda, trinta metros dentro da lagoa. Era o lugar do acidente. Foi onde uma lancha invadiu o espaço reservado aos banhistas e atropelou Felipe. O outro Felipe. Seu xará. Amigo do irmão. Por causa da coincidência do prenome e por uma estranha série de mal entendidos, ao ser dada a notícia, fez com que alguns amigos seus pensassem que ele (e não o outro) tivesse morrido. O que o incomodava não era a confusão. O que o incomodava era o fato de um jovem como ele ter perdido a vida. O que o incomodava, também, era que realmente podia ter sido ele. Costumava se banhar muito perto do local. Gostava de velejar em frente a marina (para pegar o través na ida e na volta). Seu Dingue era tão frágil que se fosse abalroado por outra embarcação o efeito seria o mesmo que se estivesse nadando.

Levantou-se e caminhou cuidadosamente até o deck. Deitou-se, abriu os braços e fechou as pálpebras. O silêncio quebrado apenas pelo som da vela batendo ao vento. O cheiro de água. Um leve arrepio pela passagem do ar, trocando calor com seu corpo. O balanço provocado pelas pequenas ondas. Esperava que o outro Felipe pudesse estar em algum lugar tão calmo como aquele. Decidiu que iria pedir ao pai para mudar o nome do barco. De Felfer (Felipe e Fernando, nome dos filhos) para "O outro Felipe", como seus amigos se referiam à pessoa que morrera. Uma pequena homenagem. Serviria mais para lembrá-lo que a vida pode acabar inesperadamente.

Retornou ao convés e puxou a poita. Manejou o leme e a vela para poder voltar. O través, agora de estibordo. Como na vida, era bom olhar para o lado de onde vem o vento.

fale com a autora

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.