LEMBRANÇA
DE UM FILME
Beto Muniz
Sempre que penso no tema da quinzena, Pálpebras, vem à mente um filme que assisti faz alguns meses. O título em inglês não foi fielmente traduzido para o português. Se fosse, seria algo como "Ontem eu não fumei", mas aqui no Brasil, onde a tradução é capenga, ficou "Pálpebras Fechadas" e, até onde eu sei, ninguém reclamou. A fita tem ritmo de filme francês, mas é americana. Daquela safra onde Hollywood tenta inutilmente superar a pieguice européia e arrebanhar um Oscar pelo conjunto da obra. Talvez mereça o de melhor atriz, porque o filme todo se passa dentro de um apartamento e a moça dá conta do recado. As ações e movimentos ficam por conta dos flashbacks, que são as cenas externas onde o ator coadjuvante nunca aparece de frente... Isso mesmo, jamais é mostrado o rosto do ator que interpreta o marido dela. Os demais atores também ficam anônimos. Explicando assim parece chato e parado, mas há muitos obstáculos internos e o recurso do diretor para retratar as memórias da personagem é excelente. A tradução final do título, Pálpebras Fechadas, deve-se a este expediente: a atriz fecha os olhos e a câmera avança sobre eles lentamente. O resultado é que a câmera parece atravessar suas pálpebras, entrar em sua mente, para então mostrar seus pensamentos. Quando vai sair das lembranças da mulher, a câmera faz caminho inverso. A mulher abre os olhos e retoma a busca pelos cigarros. Acho que eu não deveria ter dito isso, pois se alguém quiser assistir o filme eu terei acabado de estragar uma das surpresas. Mas, já que comecei, melhor continuar: desde a cena inicial a mulher está procurando, de maneira estabanada, por algo que não fica definido. Ela pensa que disse o que procura, mas não disse. A apenas no desenrolar da trama, após vários closes no maço de cigarros é que o espectador percebe que é ele o objeto da busca. Como o titulo já diz - o original - a mulher permanece um dia inteiro sem fumar após ser abandonada pelo marido. Parece que existe uma dúvida, se a abstinência poderia influir na decisão do seu amado. Para o expectador, fica evidente desde o princípio que o marido não vai voltar e que a possibilidade de retorno existe apenas para a mulher à procura dos cigarros. A grande jogada do diretor, que se chama James Wessley - ex-assistente do Kubrick, foi mostrar onde estão os cigarros. Saber que a mulher está perto ou longe de encontrá-los envolve a platéia que vai percebendo o quanto os pensamentos e a alma da personagem estão em desordem. No desenrolar do filme, narrado em primeira pessoa, o apartamento inteiro vai ficando desarrumado e lá pelo meio da trama até mesmo a platéia está em desalinho. O público sente que há uma música ao fundo e não identifica de imediato a origem. Talvez seja proposital (mais um recurso do diretor). E a música tocando ao longe funciona como mensagem subliminar prendendo a atenção sem que o espectador perceba. Quem conhece música clássica nota que a melodia vai se deturpando à medida que o som vai se definindo, mas não chega a incomodar porque na edição final ficou tudo bem ágil. E para quem não conhece Bach, a música vai perturbando na medida em que o desespero da personagem entra num crescente. Quando a platéia menos erudita percebe que Bach não está sendo adequadamente dedilhado no piano, a mulher olha para a câmera, parecendo conformada com o barulho, e diz que o vizinho deturpa a composição do mestre, mas o condomínio o compreende mesmo sem saber o motivo... Neste ponto, a história já entrou na veia de quem gosta de uma boa trama e só importa saber o desfecho da agonia que se criou na tela. Porém, o diretor, hábil que só, volta com a mulher em sua incessante procura pelos cigarros. A única cena externa do filme que não é narrada em flashback, e por isso mesmo a mais chocante, é quando a personagem vai até a janela e fica espiando os garotos do décimo andar encurralando o filho do zelador, sem tomar atitude alguma. Assim que eles terminam o 'serviço', ela começa a se questionar por nunca gritar com os garotos e por não revelar ao velho funcionário do prédio que seu filho é atacado constantemente. Apenas neste momento de questionamento ela se acalma, como se tomasse consciência de que seu problema é menor do que o do garoto pobre, vítima de uma espécie de poder. Mas ela nem dá tempo a si mesma e imediatamente apresenta uma aliança e desdenha a escolha do marido, que deixou a aliança mas fez questão de levar o par de sapatos usados no dia do casamento. A incompreensão dela diante da escolha do homem mostra bem a confusão em que ela se encontra e seu parâmetro de valores. E o filme é bem isso mesmo, um questionamento de valores. Todos! Valores sentimentais, sociais, morais... A fotografia do casal na estante perde a importância para uma pedra ao lado. Uma pedra comum, dessas que existem aos milhões em qualquer margem de rio, mas que a personagem chama pelo nome de 'síntese'. Ela se vangloria de ter ficado com a pedra, que considera mais importante do que o homem que se foi. E entra a cena em flashback contando a ocasião em que namoravam e encontraram a "síntese" numa praia qualquer. Aliás, a fotografia é excelente. Coisa de profissional mesmo. Foi trabalhada pela mesma empresa que cuidou do 'Senhor dos Anéis'. Só não sei se é a mesma equipe (buscando informações no google), nos detalhes técnicos eu não me envolvo por ignorância mesmo. O único erro crasso que percebi foi um microfone de cenário aparecendo acima da cabeça da personagem quando ela encontra uma foto numa das gavetas e fica relembrando o tempo em que ele queria ter seis filhos com ela. Ela sorri e diz para a câmera que teria doze com ele. Mas diz isso numa ternura que dá a dimensão do quanto ela ainda ama o homem que a abandonou. Não vou satisfazer a curiosidade do leitor contando o mote principal da história, que é o motivo pelo qual a mulher foi abandonada, porém vou dizer que a platéia inteira fica revoltada com ela. Mas esse ódio é mérito total da atriz, Ashley Dalton (achei no google), uma inglesinha formada em teatro e recém chegada em Hollywood. Vamos ouvir falar muito nela. Para desespero do espectador, que no final está torcendo contra a personagem e a favor dos cigarros, o filme termina com a mulher encontrando o maço e acendendo um calmamente, como se gozasse a revolta que causou no povo que a assiste. Funciona mesmo! Eu estava puto enquanto ela dava uma tragada firme e me encarava como se me desafiasse a defender os valores que ela repudiou. Nisto, a câmera acompanha a fumaça desaparecendo lentamente no ar e a cena escurece. Fantástico. Na telona o efeito é bem superior, mas pelo final do filme vale a pena dar uma corridinha até a blockbuster. |