DE OLHOS FECHADOS
Ana Luísa Peluso
Parecia leve, parecia flutuar, e o que estava lá embaixo vinha pra cima em busca do ar e da luz. Parecia memória, parecia passado, mas seria verdade: a de ser tudo por inteiro. Estaria em grandes movimentos ou renovações; em linha direta com o sol, puxando tudo pra si, voltagem total; era o que parecia. De qualquer forma era como se apresentava e não havia como mudar esse fato ou aparência. Nascia de alguma explosão.
Tudo o que sabia de si era que ardia o tempo todo, por dentro, num ritmo combustão - caso ninguém saísse da frente, os tiraria ou atiraria para alto qualquer chance de política civilizada; e quanto às pessoas, bem, se apiedava. Sua capacidade em desfazer o medo no momento era maior que qualquer inteiro, mesmo sendo esse inteiro tão enorme quanto tudo, ainda era menor que os olhos do mundo e escaparia através de si mesma.
- Cavalos alados também saltam? - Tentava dizer que voava mas todos insistiam em olhar para o chão. Quando no chão nada existia ou dizia algo; ou mesmo transitava entre dois pensamentos - o fluxo do
ungüento; compreensão que alguns podem voar - ou até entre mais pensamentos, mas a vida já era toda outra: os muros existiam para serem muros e as ruas, ruas. As mesas eram de madeira e babadores de tecido fino. O dia era amarelo e a noite, azul marinho e a praia nunca chegara, porque a vida era dura, e o chão da praia macio. Ninguém ouvia nada e se cutucam entre a dor e a fala.
Tudo o que queria era o caminho menos percorrido, onde a alma sempre quisera ir, puxada pelas guelras, mas as guerras impediram. Sim, fechou os olhos para si e para tudo o que fôra. Quando o tempo é correção do curso e os olhos estão fechados, usa-se relógio apenas por nada e no centro do círculo já não há mais Senhora da Vida. (Ou haveria?) Os olhos fechados nada diziam da boca aberta perante o sol. Mas mostravam a iluminação pelos corredores do crânio; os raios de sol entravam pela boca e faziam luz e sombra na campainha, na garganta. Tudo se aquecia como tarde de outono. Ficava tudo tão morno e o sono tão normal, que o sonho passava a Ser. Demônios de sonhos a tomaram por louca cativa; o inusitado das confissões que pareciam triviais e eram (tanto quanto
surpresas sob diferentes perspectivas); essa experiência de viver contando o que se vivia; tudo isso os inibia e a palavra surgia aos poucos; a revolução ainda era criança e requereria certos cuidados e detalhes que apenas quem gestava, conhecia. Quanto ao amor, tudo o que podia dizer é que não o encontrara até agora. E não soava agradável saber que o passado espreitava através da luz da espera. Ou que o presente observava também por ela. Ou ainda que o futuro não a via por já ser pouca a luz que restara. Parecia também outra era; o sexo, os cinco em outra esfera; um corpo, as mãos, a entrega. Pouco se via de olhos fechados, mas lembrava-se de tudo, sabia. Diante do amanhã, tão certo quanto o fim, um dia, contaria das duas vias e do caminho entre
elas - naturalmente percorrido ainda que não parecesse. Dois enormes pilares, roliços sobre um mar e cada uma das pernas da vida apoiada sobre um pilar. Sem direções opostas flutuavam em reta linha da
igualdade - já sabia a lição; o mundo é redondo e um só: mas sempre há o dia e a noite. E nesse momento tentava encontrar toda a sua história, no escuro, enquanto ainda havia tempo.
A maldição dos olhos fechados é sempre o topo da cabeça; local sensível, de difícil acesso para quem não é de dentro. Dava um medo, às vezes, do topo da cabeça gravitar pra nunca mais voltar, ou algo assim: não daria tempo: seguraria o topo da cabeça e não deixaria o pensamento zarpar em mil bolhas dele mesmo, por aí, mundo afora. Parecia que acabava sempre se cansando pelos medos todos impostos. Mas o topo continuava no topo e a cabeça parecia lhe pertencer. Agradecer ainda soava digno. No entanto sabia que deveria abrir alguma porta e sair correndo, dizer ao mundo que ficava, que ia, que agitaria, que balançava feito direito armado como circo voador; mas que, enfim, existia. Devia subir em palanques, contar tudo o que via (mesmo de olhos fechados) e gritar que tudo no fundo era uma grande farsa: ela aplaudia a si mesma frente a um espelho quebrado.
Já fazia tempo, não sabia das hortaliças na cozinha. E nem da poesia do primeiro beijo. A renúncia estava feita: "a vida virou confete, mas serpentina também caía". Eram tantos amores secretos, tanta ficção, que seu abrigo era sua ágora, seu teatro, sua ilusão e seu rosto, a máscara de inúmeras vidas que viveu e que de olhos fechados, assim, se lembrava.
Mas as pálpebras baixas continuavam expressando a mentira da memória, como renúncia.
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