SE
EU TIVESSE QUE FALAR DA BELEZA DO POEMA
Mauro Pereira da Silva
Se eu tivesse que falar do poema, teria que citar o dia
abundante, as formas puras e precisas, a evocação das lágrimas, o pulsar das esferas.
A paixão enroscada nas escadas acesas do riso, a tarde incerta no rosto acuado do homem.
Citaria a flor da primavera coesa, a queda leviana do joio colhido, a mutilação do homem e suas formas irrisórias, o ir sem saber para onde, as estradas pintadas através da vindima, a colheita feita por mãos aflitas.
Se eu falasse sobre o poema teria que cantar a rua e suas praças de velhos, suas casas carcomidas e varais repletos de roupas, escolas e crianças correndo atrás de uma bola, alguns pés de manjericão, viagens de além-mar.
Teria que falar sobre musica, sobre bicicletas e jogos, sobre mulheres indiferentes e colchões repletos de púrpura insônia, da chuva precipitando-se sobre os homens de hoje, arrastados pelos de ontem e nunca chegados aqui.
Se eu tivesse que falar do poema falaria sobre esta angústia incessante, essa eterna busca de morrer que leva o homem a ter, sem ser levado a olhar-se, sobre a falácia do riso falso, da noite preciosa e subjugada pelos tiros roucos de homens desesperados.
Teria que falar das esquinas pesadas por ferro e sangue, por quem se faz de mudo por não ter o que falar, pelas vidraças opacas.
Teria que jogar o poema dentro do liquidificador e nele criar metáforas de fome, líricas misérias, porque o poema não mata a fome dos que são últimos ou primeiros. Teria que criar labaredas intensas nas veias do poeta magro e de óculos, que escreve, mas não entende, que escreve, mas não vende.
O poema teria que citar os filamentos das palavras encardidas, jogadas sobre os ombros dos pobres de espírito, dos dias encobertos pelo riso escuro e louco, além do canto da mesa vazia. Teria que citar as expressões fistuladas sobre o balcão da vida e sobre ele morrer diariamente, sem nada além do que rir.
Não poderia deixar de lado o brilho largado no ventre da mulher, campina onde residem aqueles que não se queixam, onde o fruto não se desfez, onde a abstinência é santa, assim como é santa sua ira;
Onde fogos queimam as entranhas da criança de colo fazendo-se de homem, querendo voar fagulhas e preso ao chão, apenas excremento.
O poema não poderia esquecer a pista das cruzes, dos feriados arrastados pelos séculos sem complacência, do sangue jorrando por guerras e a valorização, cada vez mais reles, do dinheiro e das ações da bolsa.
Eu falaria das pessoas mudas e apáticas voltando para casa. Eu falaria das brigas quixotescas, velhos dominós, auditórios calados, a dimensão da água que nos inunda. Se eu tivesse que falar do poema não falaria sobre o mar, porque o mar não nos pertence nem nos inunda, o mar é vôo rasante e filho do espírito e não vivemos para o mar, vivemos para a terra, porque somos pó e ao pó retornaremos, vazios de mar.
Mas eu falaria do céu, desse céu que quase não vemos, dessa cor rubro-negra sentida em cores De Luxe sobre as plantas, as casas despidas, esse céu onde Elias foi, onde Gagárin foi e riu-se, tamanha a sua vacuidade.
Sim, desse céu eu falaria, porque é imenso e só, é fugidio e reluzente e só.
É um céu de nuvens carnavalescas onde os homens olham e anseiam, mas não conseguem alcançá-lo porque estão sós. Se eu tivesse que falar do poema soltaria os Cavaleiros do Apocalipse e soaria o som dos exércitos, Armagedom de ossos. O homem seria meu fim, nunca seria o meio.
O homem se absorveria no poema e o poema seria choro de palavras, nunca terminadas.
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