GOLPE ALTO
Maurício Cintrão
Jamais pensei que pudesse ser assim. Nem sabia que nocauteava. Em certa
manhã descabelada, minha filha Jéssica me abraçou e, aos beijos, disse: você
é lindo! Ainda estou o zonzo com o golpe. Isso não é coisa que se faça logo cedo. Mas ela fez e saiu toda alegrinha, como se fosse a coisa mais natural
do mundo.
Filhos fazem dessas coisas, eu sei. Mas é a primeira vez que recebo um agrado desses da garotinha que me ensinou a amar. Foi um longo aprendizado
que começou há pouco mais de cinco anos. Queríamos filhos e não podíamos tê-los. Assim, decidimos adotar.
Jéssica chegou com os dois irmãos de uma vez. Era a menorzinha dos três.
Marruda, não ria. Balançava a cabeça "dizendo" não para tudo, até quando queria dizer sim. Mal sabia falar. Mal sabíamos o que falar. E fomos nos
falando.
Ela tinha muitas dores de barriga. Escolado com Biéu, filho do primeiro casamento, apoiava seu corpo gorduchinho no antebraço e cantava cantigas
para acalmá-la. Não sentia amor. Sentia-me responsável, solidário e um monstro por não sentir amor naquele momento.
Era assim também com seus dois irmãos chegantes, o João Paulo e a Mônica. Mas com ela era mais forte, talvez por ser a menorzinha e a mais
desprotegida. Chorei algumas vezes por causa daquele vazio. Como posso não amar uma criatura tão fofinha?, perguntava irritado.
Foi com o tempo que aprendi com ela sobre esse novo amor pelos filhos. É um amor de conquista, como, afinal, é o amor entre adultos. O desejo é amar
logo de cara, mas não funciona assim. Ninguém nasce amando ninguém. Portanto, ninguém adota e ama. É uma questão de aprendizado.
Fomos aprendendo a nos amar. Primeiro, com os cuidados, depois, com os afagos. Hoje, eu não saberia viver sem nenhum deles: os cuidados, os afagos
e o amor dos meus filhos. E posso garantir que sou completamente apaixonado.
Ainda mais depois daquela manhã. Pois já fui chamado de tudo nessa vida, menos de lindo. Aí vem aquele toquinho de gente, me pega num abraço
sonâmbulo e diz: "Você é lindo!". Foi muito mais do que lindo! Foi lona! Nem precisou soar o gongo. Covardia absoluta de uma criança sem remorso que
mostrou com um soco de elogio o que significa construir um amor.
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