CENTRAL PARK
Luís Valise

 
 
O baticum zoava na cabeça. Dentro dos olhos fechados, desenhos brilhantes e disformes eram projetados sobre o fundo escuro. O som dos tambores marcava o compasso do coração, e a tontura girava entre luzes dentro das pálpebras cerradas. Mãos dormentes batiam no couro esticado dos tantãns; os pés dos cavalos tiravam o ritmo no chão de terra; palavras de comando abafadas pelo revoar das saias rodadas. Frases em nagô flutuando no ar enfumaçado de charuto barato: Ieparrei! 

Um silêncio recortado pelo rumor das asas de um pássaro invisível. Braços estendidos amparando corpos tomados em paroxismos desconjuntados, bêbados pela alucinação de visões encantadas. Ieparrei! E as convulsões já diminuíam, o respirar dos cavalos ia-se acalmando, os buracos das narinas tomavam diâmetro normal. Empapados de suor, os corpos já conseguiam parar em pé, olhos arregalados voltavam de viagens cheios de espanto, e então sobrevinha o cansaço, o esgotamento.

As mãos de Tomás latejavam, os dedos inchados sob o jato d'água que saía da torneira. O espelho à sua frente mostrava o jovem negro sem camisa, colares de contas coloridas em volta do pescoço, gotas de suor descendo pelo peito brilhante. Há muito desistira de tentar esquecer o nome antigo. No espelho seria sempre Tomás. Só no espelho.

Vinte anos atrás e o negrinho descalço, shorts, camiseta esmulambada, vivia pelos lados da Praça da Sé, como vivem os meninos da Praça da Sé: perto da morte. Correndo por entre os carros, os tapas e as pernadas, a carteira ou o relógio apertados entre os dedos, era a vida de Tomás começando perto do fim. Até o dia em que Seu Ângelo chegou na porta do Banco para receber a aposentadoria e não deixaram que ele entrasse com o pacote. Dentro, um liquidificador. O segurança empombou: "Com o pacote, não entra". Seu Ângelo viu o menino curioso. Resolveu arriscar: "Vem cá, moleque. Toma conta deste pacote pra mim, e quando eu voltar te dou uma gruja".  Deixou o embrulho com o menino, e já entrou arrependido, certo que seria roubado. Ficou na fila de sempre, conferiu a mixaria de sempre, e guardou o dinheiro no bolso do calção, sob as calças. Ao sair deu de cara com o moleque abraçando o pacote. Passou a mão na cabeça do garoto, convidou prum pastel na esquina. Quando viu o menino comer três de palmito, um de queijo e beber dois refrigerantes, lembrou do seu próprio filho, morto alguns anos antes. Teria agora mais ou menos a mesma idade. Conversaram. Viu que o pivete vivia solto no mundo, nem pai, nem mãe, arriscou de novo: perguntou se não queria tentar morar em sua casa. Se não gostasse, podia voltar pra rua. O moleque pensou em chuveiro quente, cheiro de sabonete, jogo de futebol na televisão, também resolveu arriscar. Assumiu o lugar do filho morto. Como não tinha documentos, Seu Ângelo pediu segunda-via da Certidão de Nascimento do Henrique, e foi assim que Tomás virou Henrique. Menos no espelho. Quem morava no espelho era Tomás.

Nos fundos da casa, o terreiro. No portão da frente, a placa: Tenda de Umbanda - Pena Branca. Sessões às segundas, quartas e sextas. Seu Ângelo e a mulher, Dona Everalda, eram o Pai e a Mãe-de-Santo. No princípio Tomás ficou cabreiro, tinha medo dos encantamentos que sobrevoavam o lugar. Acostumou-se. Jamais "recebeu" qualquer entidade. Virou cambono, tocador de tantã, puxador dos cantos rituais. As freqüentadoras reparavam no peito forte e lustroso do rapaz e ele não se fazia de rogado: servia e era servido. Tomás levava um vidão. 

Palmas no portão. Tomás olhou de longe, a loira acenou com a mão. Ele veio se aproximando, chegou perto e ficou parado, boquiaberto: seu primeiro encantamento. Ela disse bom-dia e estendeu a mão. Tomás não respondeu, pegou na mão da moça e continuou bestificado com a beleza daquele sorriso. Ela chacoalhou a mão e repetiu: "Bom-dia!". Ele saiu do transe, sorriu assustado e conseguiu dizer: "Pois não?". Ela explicou, com seu português precário: - Americana, fazendo trabalho de pós-graduação, estudava a sobrevivência das religiões africanas na vida moderna. O surgimento de Bill Gates no mundo de Oxalá. Tomás não entendeu bem, nem precisava. Concordou com tudo que a moça disse, e aceitou sua visita nos dias de trabalhos. Depois convenceria pai e mãe. Ficou vendo-a se afastar, as pernas roliças, o cabelo curto mostrando os pelinhos da nuca, o cavalo bravo da paixão tomou conta do seu corpo: pra Tomás, aquela era Iansã. Uma Iansã de olhos azuis.

Os pais não gostaram. Seu Ângelo desconfiava dos americanos. Dona Everalda desconfiava das mulheres. Na noite de sexta ela apareceu. Ficou quietinha num canto do barracão. Bloco de notas e filmadora. Close no negro bonito, que tocava o tantã de olhos fechados. As mulheres giravam no centro do terreiro, um braço encostado na testa, o outro nas costas. De repente uma era tomada, e os ombros eram sacudidos em espasmos, as feições modificadas pelo repuxar dos músculos. Close no negro bonito, no peito suado, nos braços fortes. O coração da gringa foi tomado pelo tambor, e ela deixou-se levar pelo batuque até parar defronte do moço de colares coloridos. Então ele abriu os olhos, e tocou como nunca. Os cavalos endoideceram. A loira ondulava os quadris, cheirava o suor, olhava dentro dos olhos fechados do Tomás, e via a si própria, colorida e esplêndida. Ieparrei! O ritmo foi diminuindo. Ela esperou que parasse. Então perguntou a Tomás se ele podia sair. Ele disse que sim. Ela pegou seu bloco, sua filmadora, pegou a mão do rapaz e saíram para a noite escura. Bairro afastado, movimento nenhum, falaram pouco. Logo acharam um canto onde estavam sós. Ela abraçou-o, a pele ainda úmida. Beijaram-se com paixão. Tiraram as roupas. Ela recebeu o cavalo em seu corpo bem branco, e o ritmo dos seus corações marcava a cadência do galope. Ele ouvia palavras desconhecidas, sabia que não era nagô. Deixou-se levar pela língua estranha, até pressentir um arco-íris, e Oxumaré dominar Oxum. Love me, meu amor! 

Quando os olhos se abriram; quando a respiração voltou pra dentro do peito; quando o suor estava seco, eles voltaram. No portão ela deu-lhe um último abraço, um longo beijo, e partiu para sempre, deixando-o parado naquele lugar. Ele ficou vendo sua Iansã se afastar, se afastar, até desaparecer. Depois entrou para dentro de casa. Enquanto lavava as mãos olhou-se no espelho, e viu que Henrique sorria. Tomás se fora para sempre, carregado pelo encantamento da mais que linda. Ieparrei!
 
 

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