O
GRANDE ZÉ LIMEIRA
Heringer
No sertão da Paraíba, a poucas léguas do Catolé do Rocha, o povo vai se ajuntando ao redor da fogueira e uma lua tímida surge, ao longe, por detrás da serra. A noite promete trazer cantorias, desafios e alegrias. E essa gente vem de longe, na ânsia de ver e ouvir Zé Limeira, um cantador cuja fama alcança o Orós; vai a Caruarú e a Juazeiro; e, quem sabe, já chega até no distante Piauí. Coitado de Mané Lopes! - Eu é que não queria tá na pele dele. Enfrentá Zé Limeira é bicho feio! Assim a gente que se achega vai comentando a contenda, que em breve irá encher de sons e risos o terreiro apinhado.
A fogueira ilumina a noite. Cintila e avermelha as faces enrugadas, curtidas no sol inclemente do lugar e precocemente envelhecidas pela lida, nada fácil, neste agreste perdido. Ali perto, mandacarus parecem dançar nas sombras provocadas pelo fogaréu e miríades de olhinhos invisíveis observam o povaréu, de dentro da folhagem minguada.
A noite promete.
Mané Lopes é um poeta; fala bonito; cita de cor José de Alencar, Gonçalves Dias e Zé Laurentino. Tem sabença! Toca uma viola arretada, mas não tem chance, é certo! Talvez dê trabalho ao oponente, afinal, é maneiro e alinhado. Veste casimira branca, muito limpa, e o sapato preto brilha, como nenhum outro, á luz do fogo. Mas, o seu adversário tem um nome a zelar, é Zé Limeira!
Este é uma figura única. Tem quase dois metros de altura, pele escura, quase negra, e nunca na vida calçou sapatos. A sola dos pés é couro áspero, mais duro que o couro das reses magras, que o vaqueiro abóia, à procura de um lugar ameno onde descansar seu gado. Mãos magras e ossudas tangem como ninguém o pinho, que leva sempre às costas, preso por uma tiara colorida; ele e a viola são inseparáveis! Na cabeça de cabelos desgrenhados, onde um riso franco, escancarado, parece aí ter se afixado perenemente, esconde-se o gênio do matuto, feito uma obra prima, um raro capricho dos deuses sertanejos - o caboclo tem a verve mais primorosa destes sertões, ainda que um tanto esdrúxula. É o terror dos oponentes. Quem enfrenta Zé Limeira, nestes desafios, sabe que vai perder, e pior, sente-se injustiçado. É que o “Dali do Agreste” – uma das alcunhas que ganhou dos admiradores que o crêem tão surrealista quanto o famoso pintor catalão – tem no povaréu o cúmplice ideal para os seus versos loucos e indecifráveis – ainda que originais e graciosos – em oposição aos adversários, em sua maioria prosadores elegantes, de rima versátil e acurada. Poetas que o caboclo do Tauá destrói sem nenhuma piedade.
A noite promete.
Já o som das cordas se faz escutar nas afinações de violas e a multidão ansiosa sugere motes aos cantadores. São versos criativos que denunciam os muitos bardos e a sensibilidade inata desta gente, e de onde surgirão mais e mais cantadores e repentistas. Um deles dá a seguinte deixa: “Eu vi os seios da lua no decote do horizonte”, e logo vem uma bela poesia de Mané Lopes, um primor. A multidão aplaude; ele agradece; pra logo depois descobrir, frustrado, que os versos estapafúrdios do seu compadre Limeira arrancam ainda mais vivas e atiçam como nunca a platéia eufórica. Ainda uma esperança lhe agita o coração, mas é vã. Um a um os motes são desfiados e respondidos, e somente as palavras de Zé Limeira irão ficar na memória dessa gente. São bonitos os motes: “Diz o Velho Testamento”; “Os Tempos Não Voltam Mais”;
“Ninguém me empata de chorar no túmulo dela”; ”Saudades da mulher da minha vida”.
A fogueira arde e crepita, lançando alto fagulhas e estampidos, como se querendo chamar pra si a atenção que só aos cantadores é concedida. Reclama; mas é solenemente ignorada. Ao povo, talvez se lhe bastasse o calor da fogueira pra aliviar o frio da noite campesina; mas não é assim, garrafas de pinga rolam de mão em mão produzindo o relaxamento e o ardor de que carecem, e que irá animar ainda mais o duelo das cordas das violas destes exímios cantadores.
Por fim, alguém sugere um mote: incomum, um tanto difícil, e é Mané Lopes quem nele se agarra e sai à frente.Tem pressa, talvez seja a chance que há muito espera para suplantar o rival. E nos brinda com esta pérola:
O horizonte enrubesce
E já se esconde a cascavel
Um carcará baila e desce
Ao despedir-se do céu
Um lobo-guará fareja
A pequenina cotia
Pia triste a juriti
E assovia a narceja
No sertão o dia é findo
O entardecer daqui
É lindo! É mais que lindo.
Aplaudem-no. Não como o poeta deseja, afinal, o verso é lindo. Feito ali, na hora, no calor do momento. O versejador é genial. Mas é Limeira quem fica com todas as glórias; e a multidão grita desvairada, após o derradeiro verso da noite, dele, Zé Limeira, o “cantador melhor que a Paraíba criou-lo”:
Cascavé é cobra macho
Jararaca é que não é
Pade Ciço tinha saia
Lampião, trinta muié
Eu já bebi num riacho
De seis braço de fundura
Tinha lá um bem-te-vi
E mais de cem tanajura
Que reze a salve-rainha
Quem dissé que eu tô mentindo
O entardecê daqui
É lindo! É mais que lindo.
Ao final, Zé Limeira pousa a viola sobre os joelhos e saboreia o triunfo. Aplausos e ovações... ovações e aplausos: é disso que vive este homem. Percorre toda a Paraíba. Perambula, a pé, de João Pessoa – onde já cantou pro governador – até Cajazeiras. Sabe de tudo; conhece todo mundo. Ao outro resta o consolo de uma noite inesquecível, do enlevo, de causos e histórias contadas e que, depois, poderá passar pros filhos e netos.
A lua agora desce vagarosa, mas já avisa que está de partida, pois vem vindo o astro-rei, com o seu carro de fogo e majestoso séqüito. Hora de ir embora. A multidão se dispersa. Em breve a aurora vai chegar, dourar e abrasar todo o sertão, e os homens irão se engalfinhar com os seus muitos cuidados. Uns apascentarão cabras, outros vacas e muares; outros ainda terão lavouras tristes pra arar; roças, que acima de tudo, clamam por chuvas, que se mostram reservadas e indiferentes – e teimam em não vir. E a vida continuará dura, inflexível e angustiante, como sempre foi e haverá de ser, nestas paragens longínquas e esquecidas.
E até que por aqui retornem, novamente, Mané Lopes e Zé Limeira, com suas violas feiticeiras e versos desconcertantes.
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