GÊNIO
Claudio Alecrim Costa

O tempo avançava e o mobiliário começava a se diluir como em uma pintura de Dali. A música do aparelho de cd, cada vez mais distante, quase surda, parecia vir de outra dimensão, um lugar impreciso, até tudo escurecer.

Estava sentado diante da televisão muda. O sono me envolvia como um lençol fino soprado por um vento que me manteve entorpecido até uma espécie de flash me fazer saltar como em uma foto de família.

Havia perdido a noção das horas e o copo de uísque vazio, trespassado por um fiapo de luz da luminária, brilhava como uma pedra preciosa. O computador ainda tinha meu texto congelado na tela esperando por um fim. Não conseguia absolutamente terminar a história e lutava contra mim mesmo como Quixote.

- Olá!

Escutei uma voz vibrante que parecia vir de todos os lugares ao mesmo tempo.

- Quem é?

- Sou o gênio, meu mestre...

- Que diabos de gênio...? Não me lembro de ter esfregado lâmpada alguma. Devo estar sonhando...

- Saí da garrafa!

- De uísque?

Agora uma barulhenta gargalhada me colocou em desalinho e quase caí no chão.

-Isso! Estava há 12 anos nessa maldita garrafa e nem bebo...

Meu coração fez uma pausa e disparou. Era um homem gordo e podia ter dois metros, em roupas carnavalescas, segurando a minha garrafa de bebida.

- Me dá isso aqui!

Esquivou-se do meu salto e quase derrubei a mesa com micro computador e tudo.

- Não deve beber assim, meu mestre.

- Que diabos é você? Vem aqui para me fazer parar de beber?

- Estou aqui para realizar qualquer desejo seu...

- Ótimo!

- Pode pedir...

- Quero ser um homem muito mais do que lindo...

Uma explosão colorida fez tudo voltar como antes. Estava enlouquecendo. Minha mãe dizia que escrever terminaria por consumir meus miolos. Onde estaria a bizarra criatura? Seria eu agora um homem irresistível? Peguei o telefone e liguei para Lara.

- Alô! Lara!

- Afonso, é muito tarde...

- Sou outro homem...!

Bateu o telefone na minha cara. Terminamos o namoro fazia um ano e eu ainda sentia sua falta. Fui até o banheiro e olhei no espelho. Estava horrível. Parecia saído de uma sepultura. Como poderia ser mais do que lindo? E assim adormeci no sofá, abraçado a garrafa de uísque.

O telefone tocava sem trégua. O sol invadira minha casa e me assava devagar. Num esforço brutal apanhei o aparelho miserável e gritei...

- Alô!

- Afonso?

- Eu mesmo...

- É Lara. Você conseguiu dormir?

- Lara? Desculpe...

- Não precisa se desculpar. Depois do seu telefonema não dormi mais...

- Isso me faz sentir ainda pior...

- Escute...Seu telefonema me fez descobrir que você é muito mais do que lindo...

- O que?

- Você é romântico...Seu telefonema me fez reviver os nosso melhores dias...

Olhei para a garrafa e tentei ver se algum gênio boiava no líquido turvo. Explicasse eu que uma garrafa de uísque havia provocado aquilo tudo, provavelmente me deixaria de vez. Não me lembro do que falamos naqueles minutos, mas nunca mais nos separamos desde então.

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