DOIDAVÃ
Shirley Kühne

Já fazia tempo, anos mesmo, que ela sentia que havia uma explicação para sua vida. Momentos a assaltavam e a mente parecia por instantes abrir-se e mostrar o que era ela. Mas era ínfimo esse momento, um milionésimo de segundo e o insight prenunciado sumia como a luz de uma estrela morta há milhões de anos e só nesse século, diante de nossos olhos, apaga seu clarão. 

Ela já se acostumara com essas turbulências. Seus dias pacatos no rumor enjoado da repartição pública eram perpassados por hálitos de alguma clarividência. Nesses momentos ficava estática, quase invisível, pois ninguém nunca a tirara desses estados de torpor - deviam julgá-la como mais uma funcionária encostando o serviço -, mas não passavam de quase minutos e logo voltava ao mofo de seus processos que tinham que transitar com o peso de páginas longamente escritas para pouco dizerem. É assim que se administra o mundo, as palavras tentando dar significado ao estado das coisas. Por isso ela sentia também que existia a sua, uma palavra, única, que revelada daria sentido ao seu modo de ser.

Ao fim do expediente, pegava o metrô e lia atentamente as propagandas estrategicamente colocadas nos vagões; não eram tão engraçadas quanto às dos antigos ônibus elétricos que piscavam as luzes internas toda vez que passavam no cruzamento da Av. Brasil com Rua Augusta, e deixavam momentaneamente no escuro anúncios de sabonetes, cremes de alface, pílulas milagrosas, tônicos fortificantes. Tinha uma ao lado da última porta do vagão, bem iluminada, que oferecia curso de inglês em três meses. Lembrou-se dos tempos do cursinho. Quem sabe não ficara encruado naquele remoto 1976 o sentido de sua vida - It's very easy. Fine, thanks. More or less. What's your name? Oh, God! - Soava-lhe agora tudo tão estranho. 

Desceu na estação Consolação e subiu a escada rolante; imediatamente as ranhuras da engenhoca de degraus a lembraram de seus seis anos inocentes sentados nos degraus de uma outra escada, a da galeria Prestes Maia, com a mãe cheia de pacotes a avisar que se levantasse pois estavam chegando ao topo. Ela só entendeu o perigo na hora em que uma fisgada nos fundilhos, outra no braço e os pacotes desabando para o patamar de baixo a fizeram chorar de dor e vergonha, com um pedaço de sua calcinha puída ensangüentada nos dentes do último degrau. Vergonha era uma de suas palavras, mas não era essa que importava. 

Lembrou-se também que aos sete anos saltitava feliz de mãos dadas com a mãe pela Av. São João. O dia estava azul e a praça do Paissandú mostrava orgulhosa sua igreja e o cinema, também Paissandú, logo ali ao lado, com seus letreiros que anos depois algum vento levou. Pulava, pulava tanto que a derrubou nos trilhos do bonde. O seu desespero para levantar a mãe quase desmaiada por bater a cabeça fez com que dois rapazes carregassem as duas a tempo do bonde passar. Medo. Culpa. Mais duas entravam para a sua vida. Saiu do metrô em direção ao seu prédio na Av. Paulista.

Refletia como cada palavra foi surgindo em seu caminho. Timidez, quando percebeu que olhar João no recreio podia fazer com que ele achasse que ela era igual as outras meninas, tão oferecidas e salientes por sua atenção. Mal sabia ela que João gostava de meninas que falavam e não baixavam os olhos quando ele se aproximava de alguma rodinha. Insegurança. 

Hoje, aos 51 anos, sabe que está por descobrir o enigma que quotidianamente misturava suas lembranças infantis ao seu comezinho viver solitário. Estela, este é o seu nome, entra no banheiro do apartamento, abaixa a calcinha, senta no vaso sanitário e num interminável xixi fixa repentinamente os olhos na lixeira de plástico verde de uma loja de R$ 1,99. Parece que nunca esteve tão perto de descobrir o oculto de suas emoções. Não consegue desgrudar os olhos daquele objeto que parece emanar uma energia que a faz arrepiar, arrepiar. Sente que está perto, quase evidente a palavra tirânica que mastiga suas várias noites de insônia. As suas vigílias para que não sonhasse e assim perdesse no onírico o seu real significado. Ficou sentada no vaso por vários minutos. Horas. Dias. Só ouviu a palavra quando o irmão, promotor público, a retirou do local, após procurá-la em hospitais, necrotérios, delegacias, praças públicas. Doidivanas. Doidavã.

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