FOI A GOTA...
Marco Brito

- Ô paraíba! Prepara dois traços lá embaixo e manda pelo elevador, num sobe não! Aproveita pra limpar os carrinhos...

O grito tirou-lhe dos pensamentos. Trouxe-o de volta à massa que revirava no chão.O negrinho responde intimamente:

- Não sou paraíba. Sou, mas é paulista... nascido e criado.

Pensou, mas não respondeu: não tava bom pra dar ousadia. Largou a colher de pedreiro, ajeitou o capacete na cabeça, limpou o suor que escorria da testa e esticou a vista até onde esta alcançava. Do alto daquele arranha-céu em construção, olhou para a cidade que teimava em não aceitá-lo. Nascera ali, numa daquelas favelas que cercava a grande São Paulo. Da terra de onde, a toda hora, lembravam-lhe suas origens, só guardava uma vaga lembrança da casa da avó. Fora a única vez que saíra da cidade. Tinha lá seus dez, onze anos. Seu pai, e isto antes deste largar de vez a sua mãe, estando próximo do final de ano, chegou uma noite em casa e avisou pra mulher que ia levar o menino "pra conhecer os parente". "O menino tinha que ver a cara da vó e dos primo". A pobre mulher, mais uma vez, nada disse. E foi assim que embarcou num ônibus de linha, rodou quase três dias e caiu numa estaçãozinha xifrim de interior, com um sol de rachar asfalto - se o lugarejo tivesse desta pavimentação - com a poeira entupindo seus pulmões, cegando sua visão, que àquela altura não conseguia distinguir nada que fosse diferente de cinza e cor de barro. Cinza só não, tinha arriscado levantar os olhos e, usando as mãos como proteção, viu um céu que nunca mais na vida ia esquecer. Um céu de um azul pálido, claríssimo e sem uma única nuvem. Rodou a cabeça pra todos os lados e era só o que enxergava: aquele azul que chegando, apertou-lhe a alma, esmagando seu coração. Uma claridade que lhe fez cegar o pau-de-arara que acabara de encostar e, onde depois de sentado num banco duro de madeira, sacolejando que nem pedra solta em gamela de garimpo, misturado a sacos de aniagem carregados de cebolas e galinhas presas pelos pés, fez-lhe rodar mais duas horas até saltar novamente e escutar do pai:

- "Agora falta pouco, vamo esperar o sol baixar. É só esperar...".

Ficou ali, acocado, riscando o chão com um pedaço de graveto, na falta do que fazer. Seu pai conversava com um outro que lá tinha saltado também...

- "Baiano, fio da porra! Vai adiantar o traço, sacana!".

Tomou um susto que quase tropeça nas próprias pernas. Virou o rosto irado e devolveu:

- Sou sacana porra nenhuma. Nem sacana, nem baiano, nem paraíba, nem porra nenhuma!

E o encarregado:

- Tu pode nem ser baiano, nem paraíba, mas tu é um sacana e tá acabado, agora desce... fio da gota...

Desceu, retado, mas desceu. Pegou o elevador de carga e empurrou a alavanca pra baixo... Quando chegou à casa da avó era bem de tardezinha. O sol baixou do firmamento devagarzinho, pintando o mesmo de todas as cores que ele já tinha visto, até não sobrar cor mais nenhuma. O dia então adormeceu e deixou a noite tomar conta do céu. As luzes das estrelas foram-se acendendo e iluminando até que, ele maravilhado, não podia mais acreditar que pudesse haver espaço para tanta luz e tanta estrela. O sertão mostrava-se assim tão bonito, talvez pra esconder a dor, a fome e a vida dura que ditava para todos os seus rebentos. Com a noite veio o frio, tangendo o calorão do dia. Mais tarde, com os primos e as tias, viúvas de maridos vivos, perdidos na vida em busca de trabalho; com a avó, já meio cega, à volta da mesa de madeira rústica, o lampião a alumiar o prato de sopa rala, e prestando atenção à prosa do pai, é que veio entender o aperto no coração. Aquele aperto estava em todos os lugares, nos olhos das pessoas, na poeira da estrada, no mato da caatinga, no prato raso de caldo ralo que prolongava o sofrimento dos meninos. Aquela havia de ser a sua primeira e última viagem à terra que jamais seria sua. Tinha feito a jura deitado, num chão de terra batido, sobre uma esteira de palha e ouvindo os gemidos de uma das mulheres enfiada debaixo de seu pai...

- "Acorda, cearense fio do cabrunco, ximbungo do caralho...!", e baixando um pouco a voz: - "Estafermo de uma ..."

Foi a conta, o negrinho saiu do elevador, puxou do cabo da navalha e rasgou a carne do empreiteiro de alto a baixo. A lâmina abriu um veio no pescoço do outro por onde sua vida esvaiu-se aos borbotões.

Quando a sirene chegou tocando desde o fim da rua, estavam os olhos de ambos, um mirando o outro.

O inspetor de polícia pega-o pelo braço, e sem nenhuma reação, o leva pra viatura.

Na delegacia, o plantonista pergunta:

- E então neguinho, qual foi o motivo?

E ele:

- Até de ximbungo me xingava doutor, até de ximbungo. E eu nunca disse nada. Agora, me chamar de estafermo. E ficar todo mundo rindo...

O delegado o interrompe:

- Neguinho, você sabe o que é estafermo? Sabe?

- E eu sei lá Seo doutor, e eu sei lá... Esse é o problema doutor, eu cansei de dizer. Fale só o que sei, que aí eu me defendo, mas não, ficou aí dizendo coisa, inventando palavra, azoei... 

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