PRESERVANDO A FAUNA
Luciana Priosta

Condomínio de luxo é muito chato. Mas tem aqueles condomínios cheios de pompa e circunstância que olhando mais de perto não passam de cortiços de luxo. Só que no meio de um matinho ali na esquina. Raspe o verniz para ver só. Nesses a coisa é sempre agitadíssima. Botaram uma cerca em volta de meia dúzia de lotes, contrataram meia dúzia de grilos e aranhas, e já tem gente achando que é fazendeiro. Experimente ficar escondido, só espiando. A fauna é riquíssima, espécies nunca vistas! Qualquer ecólogo morreria para estudar um condomínio desses. Mas não pode. Sem crachá não entra. E para ter crachá só sendo morador. E para ser morador só retrocedendo um pouco na escala evolutiva. Como ninguém está para contrariar Darwin, melhor ficar do lado de fora. A civilização tal qual a conhecemos. Vouyer de nós mesmos.

Mesmo com todo o agito, vez por outra acontece alguma coisa que faz estremecer todas as pulseiras douradas da vizinhança. Falsas, claro. As pulseiras. As verdadeiras estão no prego faz é tempo. Como é que você acha que vão pagar o caviar do gatinho? Qualquer cidadão empoleirado no muro pode ver. Aliás, quem me soprou esta história no pé d'ouvido o fez antes de virar churrasquinho no alto da cerca elétrica. A curiosidade do bicho homem não vê limites. Nem avisos de perigo de morte. Sem trocadilho.

Eram vizinhos há pouco tempo, muro baixo entre os lotes para as crianças brincarem com maior liberdade (como a gente brincava na várzea, lá no Ceasa, catando balão... saudade, suspiro, etc.). Mas se conheciam há anos. Dançaram nos mesmo bailes, brigaram as mesmas brigas e até dividiram as mesmas namoradas. E este foi o início do fim. Um vizinho casou com a namorada do outro. O outro? Ficou solteiro e juntou seus trapinhos com um dogue alemão. Sabe aquele monstro que todo mundo insiste em dizer que se trata de um animal doméstico, amigo e companheiro? Este. Não se freqüentavam mais. Milú (Milú!) ensaiando comer a digníssima mulher do vizinho. No sentido animal. O outro ensaiando traçar a antiga namorada. No sentido animal também. 

Mas, homens civilizados que eram, nunca mencionaram tais, digamos assim, diferenças. Como todo animal urbano minimamente educado, simplesmente pararam de se falar, reduzindo o convívio a "olácomovai?" e "euvouindoevocêtudobem?". Apenas as crianças, alheias às idiossincrasias dessa gente grande e maluca, tomavam conta do grande quintal declarando Milú o mascote da turma e Lady Fifi, uma gata bonachona e dócil, um brinquedo eletrônico com pilha infindável. Lady, como preferia a mulher do vizinho, era devidamente mal acostumada a sardinhas, colinhos e fru-frus. Ela achava muito chique andar com a angorá para cima e para baixo pelos shoppings.

Fim de semana, praia, crianças e confusão. O outro solta um suspiro aliviado e maldoso: "estas pestes que vivem esburacando meu jardim... boa viagem!". Decide que vai festejar, chamar umas amigas, comprar umas cervejas. A festa segue até tarde animadíssima. "Hoje não tem vizinho para reclamar do barulho". Até que o inacontecível (inventei essa agora e não faço idéia se deve ser com c ou ss; segue a história) acontece. Uma gritaria feminina chama sua atenção lá pelos lados da piscina e sai correndo para ver o que é. Em cima de uma das mesas o doce Milú abana o rabo, focinho sujo de terra, e a Fifi mortinha da silva entre seus dentes.

"Minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro! A mulher do vizinho vai ter um treco!" Cai aparvalhado na cadeira de plástico mais próxima e nem precisa dizer que o clima da festa foi para o beleléu (sempre quis saber onde fica esse tal de beleléu). O pessoal vai saindo de fininho evitando olhar para a cena de documentário do Animal Planet em cima da mesa. No fim só fica mesmo aquele amigo solteirão e bêbado. Sei lá, para ser solidário naquela tragédia privada. Ou porque não tinha condições de dirigir. Ou porque alguém tinha que Ter a idéia. Numa hora como esta é que as idéias de jerico ficam à espreita, só esperando um desmiolado qualquer capturá-las no ar para que possam tomar corpo e fazer estrago geral. 

- Ô cara, esquenta não! Faz o seguinte...

Os olhos do outro foram iluminado-se, acreditou verdadeiramente que estava salvo! Ainda havia esperanças de comer a mulher do vizinho! Claro que toda sua consternação vinha do fato de acreditar que suas chances com a vizinha, depois do trágico assassinato da sua Lady Fifi, já eram. Estava achando o que? Membro da Associação Protetora dos Animais? Ouviu com atenção. Achou a idéia fantástica. Aliás, toda idéia de jerico sempre parece fantástica. Basta um exame uns cinco minutos mais atento e abandona-se a idéia de jerico imediatamente. Mas o outro não estava em condições etílicas de examinar nem se sua braguilha estava aberta, então...

Marchou até o monstro babento, arrancou-lhe a gata morta da boca e dirigiu-se para a lavanderia. Encheu uma bacia com água e sabão e pôs-se a limpar a gata morta como nunca sua língua havia limpado antes. A língua da gata. Um pouquinho de amaciante para ficar os pêlos mais macios. Foi o que leu no rótulo. Tirou o excesso de água com uma toalha felpuda e cuidadosamente secou e penteou a gata. Deixa seus amigos saberem que levava jeito para cabeleireiro... Pegou a bichinha, arrumou bem bonitinha na varanda da casa do vizinho e, fingindo-se de morto, ficou esperando o feliz regresso da família ao lar para o reencontro com Lady Fifinada. Com trocadilho. 

 

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- Manhê, olha só a Fifi na varanda!

A mulher do vizinho cai dura no gramado. O Padre é convocado às pressas para uma seção de exorcismo. Toda a vizinhança vai chegando, persignando-se, olhos arregalados. Os dramas domésticos exercem uma atração irresistível. A criançada sai solene com o pobre corpo da gata debaixo do braço para enterrá-la. O Féretro segue até os fundos do terreno, as crianças em profundo e respeitoso silêncio. O outro espia por cima do muro:

- O que aconteceu? – a cara mais deslavada do mundo.

O menino mais velho se aproxima do muro e explica baixinho:

- Antes da gente viajar, a Fifi apareceu morta lá na sala. A mamãe chorou um tantão, sabe? Fizemos o enterro lá nos fundos, rezamos e tudo! Ainda dei um beliscão no Ricardinho pois ele rezou tudo errado. De sacanagem, sabe? Eu falei para ele que reza era coisa séria mas ele me chutou a canela e saiu gritando umas palavras estranhas – e baixando ainda mais o tom de voz - era língua do demônio, sabe? Ele jura que inventou as palavras na hora, mas eu não acredito. – e num fio de voz - Acho que ele estava possuído, sabe? E a Fifi virou morta-viva, estava lá na varanda, limpinha, cheirosa...

O outro olha para o menino endemoninhado. É o mais branco e trêmulo de todos. Decide fazer malas e mudar-se imediatamente. Para outro planeta. Não sem antes doar Milú para a fábrica de sabão.

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