DEBAIXO
DA LÍNGUA
Jorge Gomes da Silva
A população do futuro sentia-se refém de uma permanente sensação de angústia. Uma após outra, as pessoas mergulhavam numa estranha depressão e perdiam toda a vontade de sorrir. Os lideres, muito preocupados, reuniam vezes sem conta com as melhores máquinas em busca de uma solução.
Embora nenhuma criatura viva tivesse lidado com o fenómeno da violência, erradicado do planeta várias gerações atrás, as melhores máquinas conservavam registos que confirmavam a associação entre determinados estados de alma e a erupção de conflitos entre seres humanos. Isso, claro, no tempo da barbárie, séculos atrás.
No presente, a população do futuro vivia feliz. A harmonia compulsiva, imposta como último recurso pelos governantes de um mundo em convulsão, pusera fim a um período negro da Humanidade. Unidos em torno de um objectivo comum, pacificar, os mais brilhantes investigadores, patrocinados por grandes nações e poderosas empresas, haviam produzido uma vacina contra o ódio e todas as manifestações negativas da natureza humana. Resultou.
A paz instalou-se por todo o lado, a fome desapareceu em duas gerações e teve início a Era da Harmonia. O mundo inteiro prosperou, sob o domínio incontestado de gigantescas corporações. Políticos, cientistas, intelectuais e religiosos proeminentes trabalhavam em conjunto num sistema que se exigia perfeito. As melhores máquinas seriam o sustentáculo de toda a operação, garantindo a ausência de emoções e outras fraquezas susceptíveis de alterar o equilíbrio que se buscava.
Todos acreditaram que a felicidade eterna seria o resultado final do esforço colectivo. Até ao dia em que um cidadão deu por falta de alguma coisa.
Dissecaram-no como uma rã, histéricos com a situação. Apelidaram-no de mutante, isolaram-no de qualquer contacto com o resto da população do futuro. Nem assim conseguiram evitar o contágio.
Como uma praga, os cidadãos entraram em desassossego, num desconforto constante que os perturbava ao ponto de questionarem a vida maravilhosa que as melhores máquinas preparavam para cada um. Nada conseguia arrancar aos infectados um momento de boa disposição, nenhum soro, nenhuma indução electrónica, nenhuma ameaça ou punição. Os alarmes dispararam na Sede quando o problema atingiu um dos mais brilhantes sábios, um sobredotado da Literatura Encantada.
Boquiabertos, os Presidentes assistiram à projecção holográfica do desabafo alucinado de tão ilustre personagem. O homem chorava, incapaz de se conter perante a conclusão a que chegara, uma conclusão que punha em causa a perfeição do sistema e assim lhe minava em teoria a legitimidade. E isso, o Poder nunca toleraria. Nenhum dos presentes conseguia dissimular a indignação, mas o pior ainda estava para vir.
O sábio, projectado no centro do anfiteatro, concluiu o raciocínio com uma grave acusação. Faltava qualquer coisa, afirmava. Algo, prosseguia o demente, de que os antigos dispunham e que parecia ser o centro das suas atenções. Uma palavra, sugeriu. Uma palavra que alegadamente desaparecera do léxico moderno, aquando da Grande Purga das Emoções Insidiosas. Fazia toda a diferença, pois se faltava constituía uma lacuna, uma inferioridade relativa, uma imperfeição.
Em pânico, reuniram na Sede os mais inteligentes e talentosos escritores, tecnicamente mais habilitados a encontrarem uma solução para tão grave problema. Durante semanas, milhares de sobredotados debateram a questão e avançaram com hipóteses que sempre redundavam em desilusão. E a todos ficava a estranha sensação de ter a palavra certa debaixo da língua, quase a brotar por magia de entre os lábios entendedores.
Nas ruas, os sinais de descontrolo somavam-se com cada vez maior intensidade e nenhum Estado sabia como lidar com o problema, dada a inexistência de qualquer unidade policial ou militar. A segurança, nesses dias, era um dado adquirido. Contudo, a população do futuro tomara conhecimento da falha e exigia agora uma rápida explicação.
Com a civilização em colapso, confiaram às melhores máquinas a resolução do imbróglio. Demoraram pouco tempo, como de costume. Depois de processarem os dados, concluíram que a palavra desaparecida era um vocábulo curto e sem sentido que durante a Purga nenhuma máquina conseguira substituir, descartada por incompreensão do conceito. Na impressora, a palavra surgiu perante os olhares ansiosos da elite mundial: AMOR.
Ninguém sabia o que fazer com aquilo. Decidiram ignorar a proposta, no que constituiu um precedente inimaginável. Minutos depois, voltaram todos à sala de reuniões.
A palavra que não existia seria, por decreto, inventada.
Nenhuma das palavras novas sucessivamente apresentadas pelos governantes à população do futuro acalmaria a revolta que se instalou. Pouco tempo depois, o mundo acabou.
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