UM
CERTO LADRÃO QUE
"COISOU" RUA ABAIXO
Heringer
Pela maneira dramática com que nos contava o caso, gesticulando muito, fazendo pausas estudadas e causando suspense, não poderia ter sido diferente: éramos pura atenção! Na roda, que escutava a história com muito interesse, estávamos eu, um amigo e as duas irmãs do narrador, sendo que, de uma delas eu estava bastante enamorado.
Tratava-se de um caso de roubo que acontecera ali perto, não fazia muito tempo, e que ele nos contava agora com esta fidelidade e riqueza de detalhes que lhe eram típicas. Eu confesso que estava ansioso por saber que fim levara o ladrão que, segundo ele, se metera numa casa do bairro, e que, denunciado por um vizinho, fora encurralado lá dentro, por um guarda que acudiu o chamado. Uma pequena multidão se ajuntara nos arredores, e acompanhara o caso com crescente curiosidade, e nela estava, claro, o Vado, este que agora nos deliciava com esta boa história.
Ora, o ladrão fora impedido de fugir pelos fundos da casa, graças a uma artimanha do guarda, que pra lá correu, antecipando-lhe. Então aconteceu o que ninguém esperava, ou mesmo podiam imaginar. Não tendo como escapulir pelos fundos, o delinqüente resolveu ousar e, escancarando a janela que dava pra rua, saltou ligeiro, diante da multidão atônita, e...
Aqui, fica bem entregar a história ao seu dono. Sem ele, nem saberíamos do caso, então, que nos conte, com as suas próprias palavras, o que se deu:
- ... ninguém esperava isso, e de repente, uma janela se abriu e por ela saltou um rapaz magro, moreno, muito ágil, que "embucetou" rua abaixo, antes que algum de nós pudesse tomar qualquer atitude. Quando o guarda foi inteirado da nova, já o gatuno ia longe, dobrando a esquina...
Eu mal podia acreditar no que ouvira, e corei. Devo ter ficado mais vermelho que a saia carmesim, curtíssima, que pouco cobria das lindas coxas da minha amada. Olhei pro grupo que continuava atento à fala do loquaz narrador, e percebi que ninguém esboçara qualquer reação reprovação ou mesmo espanto. Vai ver era eu e esta minha lendária timidez que, exarcebada por uma rígida educação religiosa, e que nunca me permitia falar, ou sequer ouvir palavras de baixo calão sem sentir grandes constrangimentos... vai ver era eu... e, se aos outros isso nada significou ou teve qualquer importância, a mim me deixou pasmado. Até ao fim da história eu permaneci cabisbaixo, incapaz de encarar o grupo, principalmente a ela, Leilane - este o nome da minha pequena.
Confesso que, na primeira oportunidade, corri ao dicionário, a ver se lá havia mesmo esse tal verbo "embucetar". Não havia. E assim, quando fiquei a sós com o Vado, já fui lhe perguntando, entre curioso e acusador:
- Que palavra maluca foi aquela que você usou quando nos contava a tal história do ladrão? Porque disse aquilo, e logo na frente das irmãs?
- Disse o quê? perguntou-me espantado;
- Embucetar, você disse embucetar... disse que o ladrão saltou a janela e em-bu-ce-tou rua abaixo...
- Como, embucetou! ele parecia mesmo surpreso - do que você está falando?
- Ora, não me venha com essa. Você disse isso o que eu disse, que o ladrão embucetou rua abaixo... acho que você inventou essa palavra...
- Eu não falei isso não...
- Falou sim!
- Falei nada...
- Falou!
- Não falei...
- Falou!
E, antes que continuássemos com este coaxar interminável e absurdo, dei a discussão por encerrada. E depois andei a perguntar aos amigos o que significava, de fato, este verbo "embucetar". Não sabiam ou, pelo menos, não queriam me dizer, até que um explicou que era o mesmo que "coisar", ou seja, quando a gente não sabe qual palavra usar para descrever uma determinada ação, fala coisar, e citou uns exemplos: fulano coisou... beltrano anda coisando... isso...
Então era isso! Acabei me dando por satisfeito, mas ainda pensei por algum tempo por que o Vado não empregara logo esse tal "coisar" na ocasião. Bastava ele ter dito que o ladrão havia pulado a janela e "coisado" rua abaixo... teria ficado melhor. Ou não? Sei lá... Já ando confuso. Pensando bem, acho que ninguém ia entender. Embucetou ficou de bom tamanho, eu admito, sem dúvida que ficou bem melhor!
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