O CASO DO MENINO QUE
INVENTOU A PALAVRA AMOR

Felipe Lenhart

Conta a lenda dos casos de amor impossível que certo dia andava pelas ruas um menino pobre, esmolambado, sujo e feio, com a cabeça infestada de piolhos, os dentes caindo de podres, as orelhas manchadas de cera, profundas olheiras mais roxas que a uva do vinho tinto debaixo dos olhos, olhos tristes, apagados, opacos de indiferença e desilusão. Caminhava, mas bem poderia se dizer que se arrastava a tal criatura, menino ainda, adulto na fala e no caráter, porém, e se fosse preciso aqui descrever mais de sua vida, não haveria papel que chegasse para tanto. Basta dizer que enfrentou as chuvas das noites frias e o sol inclemente dos dias de verão, as tempestades e as intempéries todas sobre a sua cabeça de menino com um espírito tão apagado quanto era o seu olhar. Pois foi um menino como esse quem inventou a palavra amor. 

Já a menina que o inspirou e lhe serviu de musa era lavada, bonita e cheirosa. Diziam que tratada a pão-de-ló, no costume da época. Ela aparecia toda sexta-feira na praça central da cidade, junto com umas amiguinhas, para brincar e correr e pular por todo lado. À sexta-feira, nada mais natural. As preocupações escolares cedem lugar aos pensamentos mais ingênuos, as cobranças, as chateações, as aporrinhações familiares dão lugar às mais amigáveis relações com a vizinhança. Sexta-feira, portanto, tudo é festa. Para a menina, bem nascida que era, não poderia ser diferente.

Acontece que ela e suas amigas não gostavam do menino de rua, o esmolambado. Ele “fedia”, era “feio, magricela e desdentado” – disso tudo o acusavam. Houve vezes, sextas-feiras, em que chegavam, essas cruéis meninas, a atirar pedras no menino, lhe dizer impropérios em voz alta para que todos os velhinhos e velhinhas que nos bancos da praça sentavam as ouvissem claramente. E riam, riam desbragadamente, o que fere, sem dúvida. O menino não tinha raiva delas, apenas abaixava a cabeça e saía de cena, ia embora com os seus – cachorros tão vira-latas como ele. Antes, contudo, mirava certeiro a menina, e quem o assistiu um dia nesse momento garante que seus olhos brilhavam, o que era estranho. 

Uma tarde, uma sexta-feira, ele tomou a coragem que só os bravos têm, que só os personagens de Shakespeare têm, que só Raskolnikov teve, super-homem menino, menino super-homem de um instante para o outro, coçou sua cabeça, estufou o peito e chegou muito perto de onde a menina estava sentada, brincando com uma boneca à sombra de uma árvore. Sem fazer um barulho, um ruído sequer, o menino, que não sabia escrever direito, escreveu no chão, em letras grandes, bem grandes, a palavra que lhe veio à mente, pois estava muito, muito perto da menina e seu corpo tremia de nervosismo: AMOR.

Quando uma coleguinha da menina flagrou o menino ali tão próximo, com uma vareta na mão, gritou: “Pega o moleque de rua!!!”. Foi o tempo do menino sair correndo e sumir.

A menina, ao ler o que no chão estava escrito, sabia, soube, sabe ainda hoje, que eram para ela aquelas letras tremidas e mal desenhadas. E ela olhou para todos os lados, procurou em todos cantos, durante todas as sextas-feiras seguintes, revirou do avesso a praça central da cidade e seus arredores, mas nunca mais viu o menino, o pobre menino que inventou, para ela, a palavra amor e o seu sentido mais bonito.

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