FANTASIA
DE MENINA II
Beto Muniz
Emilia acordou assustada, e mais assustada ainda ficou com o alarido no terreiro. Ouviu o pai gritando pelos irmãos mas não entendeu o chamado, porque o latido do cachorro se misturou ao barulho de latas e tropel. Ainda sem entender o que acontecia mas achando por bem acudir o pai, Emilia abandonou o catre e saiu porta afora em disparada. Ainda era noite, porém o terreiro todo se iluminava com o fogo do paiol. Seu primeiro pensamento foi para o morcego que dormia na viga principal. Emilia sorriu. O fogo purifica o mal, ela estava livre do vampiro! Um átimo de segundo depois ela voltou à realidade: a colheita toda se perdendo. As sacas de arroz, o estoque de milho, o feijão andu colhido e batido na semana anterior... O que seria das galinhas e porcos sem a ração de milho? Um sentimento de culpa tomou conta da menina e a manteve estática na soleira. Se ela não desejasse tanto que a providência Divina a livrasse do compromisso com o príncipe das trevas, certamente nada disso estaria acontecendo. O misto de desespero e culpa a moveu e, de repente, ela se viu entre as chamas, tentando salvar uma porção qualquer do que ainda não estava queimado. Tarde demais, tudo perdido, tudo consumado. Não fosse o pai tirar a menina de perto das chamas ela também teria se acabado nas mesmas labaredas que consumiram seu maior pesadelo. Nos dias seguintes ao incêndio o pai se mostrou abatido e por diversas vezes Emilia, nutrindo o remorso mudo de quem omite sua culpa, ouviu a mãe comentar que o jeito seria buscar socorro junto ao cunhado na cidade. O suprimento anual de arroz e milho havia se perdido e, a menos que pedisse ajuda, a família não teria para comer e nem mesmo semente para o plantio. O pai relutou diante dos argumentos, mas um dia encilhou o cavalo e levou a carta que pedia socorro. Duas semanas depois chegou um carro, coisa rara naquelas estradas, e quando atravessou a porteira as portas se abriram para os tios e primos que moravam na capital. A priminha, na primeira borboleta que se aproximou, desandou a gritar como se um monstro a estivesse atacando. O primo era quase da mesma idade de Emilia, pouca coisa mais velho, um atrevido. Nem bem cumprimentou os tios, o moleque já desandou a dar estilingada em tudo quanto é ser vivente do sitio, até na borboleta que assustou a irmã. Emilia odiou o primo, mas o aturou por se achar culpada pelo incêndio no paiol, que era a razão de o pestinha estar ali. No dia seguinte ele a acompanhou para todos os cantos, não ajudou nas poucas tarefas e até atrapalhou com o tanto de perguntas, não sabia nada vezes nada e perguntava de um tudo. No terceiro dia Emilia deixou de odiar, afinal ela não poderia odiar alguém tão bobo. Ela ensinava coisas da fazenda e ele dizia coisas da cidade. Ela, que era só curiosidade, foi se encantando e de repente o primo já não era tão bobo, apenas desconhecia as coisas do mato, assim como ela nada sabia da cidade. Após uma semana trocando informações, Emilia já esquecera os remorsos quanto ao incêndio que trouxera os tios à fazenda e não desgrudava mais do primo, e nem ele dela. Até que, para tristeza da dupla, os tios avisaram que partiriam no dia seguinte. A priminha não via a hora de se livrar dos besouros, mosquitos, borboletas e demais monstros rurais. Diferente do irmão, que alegou estarem em início de férias escolares e bem que poderiam ficar mais uma semana. Foram tantos os pedidos! Ficou acertado que ele ficaria mais duas semanas e depois embarcaria rumo a capital em companhia do pai de Emilia, já que ele teria que retirar a ajuda financeira combinada. Emilia disfarçou a alegria e foi para a varanda com cara de tristeza se despedir dos tios. Dois dias depois, durante uma aula de estilingar manga verde, o primo machucou o dedo e Emilia, ao socorrê-lo, descobriu um sentimento novo, de gostar além da conta. Trancou a sensação dentro do peito se achando boba por gostar do primo de forma diferente da que deveria gostar de alguém da família. O primo parecia nem se dar conta e ela, com o coração em ebulição, pensou que estava apaixonada e já fantasiou casar, ir morar na capital, onde sua casa, ou melhor, apartamento - para ver as pessoas lá do alto - teria água encanada, luz elétrica, geladeira. Ela nunca mais teria que acender o fogão a lenha. As semanas se foram. Sonhando em silêncio Emilia, gostando além da conta, idealizava um mundo maravilhoso na capital e nem percebeu o tempo passar! As fantasias ruíram quando o pai anunciou que estava levando o primo embora. Na despedida foi pega desprevenida. O primo atrevido colou boca com boca e sublimou o encanto da prima. Ela não percebeu ele partir e ele nem se deu conta que deixava para trás uma menina, quase moça, com um buraco no peito, um vazio desajeitado, um sentimento desconhecido, uma vontade sem nome e a boca muda procurando uma palavra para traduzir o gostar muito mais que além da conta experimentado após o beijo roubado. Emilia, mocinha casadoira, que desde pequena aprendera com a mãe os ofícios do lar, continuava sua rotina de ressuscitar o fogo toda madrugada e depois, sem perceber que não cabia por inteiro no colo materno, se aninhava com os cabelos e olhos estorvados de cinzas segurando o estilingue esquecido pelo primo. Era só o tempo do leite ferver, mas nesses poucos minutos uma ausência a consumia por inteiro: faltava uma palavra. Emilia desconhecia a palavra que faltava e temia ainda ter que inventar uma para ser usada no meio da tarde, que era quando seu peito, boca, barriga e entranhas urgiam em nomear as sensações desconhecidas. |