JOAQUIM
Paulo Panzoldo
Eu o chamava Joaquim. Não me pergunte a razão de um morcego ser chamado de Joaquim, porque fato é fato, não requer argumento. Era Joaquim e ponto final. Eu estava em início de carreira e fui designado para fazer uma campana no bairro paulistano de Moema. Esse trabalho durou mais de uma semana, com o frio das noites de inverno pegando forte. Pela região existiam diversos "chapéus-de-sol", muito comuns na baixada paulista. Sua copa é grande e bem distribuída e suas folhas são largas, fazendo com que proporcione excelente sombra no verão, além, claro, de ótimo abrigo contra o sereno das noites de inverno. O único inconveniente são os figos. Na verdade, essa árvore - não me recordo do nome em hindu - é uma figueira que foi trazida da Índia por algum maluco acalorado, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal. A primeira vez foi um susto. Na verdade um susto recíproco, pois nenhum dos dois contava com a presença do outro ali, com aquele frio todo. Eu olhava distraído para o edifício que vigiava. De vez em quando contava os andares e verificava se as luzes estavam acesas, ainda. O ruim é que elas sempre estavam. Se apagassem, era só uma questão de tempo para sair atrás do marginal a quem eu perseguia: um perigoso traficante que saía pela madrugada. Eu apenas o seguia e anotava os locais por onde ele passava. Nada mais. Meu corpo fazia parte da sombra formada pela árvore. Junto ao tronco, eu simplesmente desaparecia. À minha frente, meu carro proporcionava mais proteção ainda. Em noites como aquela, eu vestia um sete oitavos cinza escuro, quase preto, que comprei no Rio Grande do Sul. O casaco, o gorro e a atitude me transformavam num 'pirriu'. Cheguei a faturar umas caixinhas de pessoas que estacionavam o carro por ali para visitar amigos naquele ou noutro edifício ali por perto. E tudo ia bem, até que uma noite um verdadeiro monstro me aparece bem acima da cabeça. O susto foi tão grande que saquei a arma, crendo ter sido descoberto. O bicho tinha uma certa envergadura e estranhou minha presença por ali, em território dele. Eu, aquele casacão negro, gorro na cabeça, só podia ser um morcego. E ele desandou a bater as asas nas folhas, fazendo com que caíssem alguns figos, alguns na minha cabeça. Não sei se estava oferecendo um "cafezinho" ou simplesmente me atacando, mas o fato é que aquele figo, caído lá de cima, dói um bocado quando cai na cabeça. Nessas alturas, eu me cobri com os braços e o ato, me parece, trouxe um certo respeito, mostrando a ele quem é que mandava ali. Envergadura por envergadura eu era mais eu e ele pareceu aceitar a derrota. Não sei bem o motivo, passei a chamá-lo de Joaquim. O fato é que nas noites que se seguiram, ele vinha voando rasante pela Avenida Vieira de Moraes, sempre à mesma hora. Na boca, um figo de outra figueira qualquer. Devia imaginar que eu, aquele morcegão enorme, não conseguia subir na árvore para catar o alimento. Voava em volta da "nossa árvore" e, após localizar-me, soltava o figo sobre minha cabeça, como uma bomba. Depois vinha o de sempre: dezenas de figos caídos lá de cima, as folhas batendo com alvoroço e eu pedindo pro Joaquim parar de fazer barulho. Uma noite Joaquim chegou mais cedo. Tinha trânsito, ainda. Vinha voando baixo pelo meio da avenida. No outro sentido uma picape, dessas importadas, bateu de frente com o bicho. A perua brecou, mas não em tempo. Morreu na hora o Joaquim. Na boca, o figo da noite. Fiquei triste. Três dias depois prendemos o traficante. |