VAMPIRO
CAIÇARA
Míriam Salles
Rasteiro e certeiro passou rente à cabeça das pessoas ao redor da fogueira, sem tocar nenhuma delas. Algumas sentiram o ar se deslocando e ensaiaram se voltar, mas foi um sopro tão leve que nem chegaram a concretizar o ato. As outras nem se deram conta. Continuaram a conversar, contando casos dos antepassados, dos vizinhos e pensando nos casos que ainda estão por acontecer. Quando a gente lembra do passado é inevitável pensar no futuro e, praquela gente simples que ali se reunia, muitas vezes o que ainda não tinha sido acabava sendo estória contada pelo inconsciente coletivo como a mais pura verdade. Nessa noite contavam estórias do mar. - Lembra, Dito, quando o barco do Romão foi a fundo e ocê tratô pra mais de 40 guris pra tirá ele do fundo? - Foi, Santa. Homem ninhum quis me ajudá, mais a criançada veio em troca do guaraná. Foi um pitirão daqueles. Lindo de vê aquela gurizada toda puxando no "uuum, doooois, uuum, doois", e num instante o barco tava fora d'água. - E daquela outra vez, puxou o Quinzinho, daquela vez que o Tião acordou a praia toda dizeno que o dedo de Deus tava pegano fogo? - Ah, mais daquela vez foi verdade sim. Não que tava pegano fogo, mas de sete em sete anos sai aquela bola de fogo da pedra das arara e vai batê lá no dedo de Deus, e o Tião viu foi isso. Eu nunca vi, mais meu pai viu, e meu vô também. Diz que quem vê tem muita sorte. E como todo assunto muda de rumo sem ninguém saber porquê, lá veio outra estória. - E o caso dos morcego que comero o pé do Dautinho? - O pé não, foi só a ponta dum dedinho. A sorte dele é que murcego põe uma baba depois que corta que é pro sangue num vazá nem escorrê que é pra ele podê ficar chupano bem divagarzinho... Num fosse isso e o menino tinha esvaziado pelo pé. Mas o pai que tava ali do lado drumino, ouviu o barulho da chupação e jogô um farolete na cara do vampiro que fez ele sair voando batendo em tudo quanto foi parede. Diz que quando isso acontece, o bicho volta pra chupá o resto porque buraco que vampiro num fêcha solta o cheiro do sangue por ai que nem perfume pros bichos. Conversa vai, conversa vem e a fogueira se acabando, cada um se levantando e juntando as mantas e os panos nos quais se sentavam, foram se despedindo rumo a suas casas. Numa das casinhas mais afastadas, Dautinho dormia calçado como sempre, de medo do vampiro voltar pra chupar o resto do dedo. Mas era verão, e ele havia andado num mangue procurando guaiamum e seus pés coçavam com os bichos de pé que ali pegara. Semi adormecido, tirou o sapato pra coçar melhor entre os dedos. O dedinho era um tantinho menor do que os outros mas nem se via mais a cicatriz da mordida do morcego. Depois de uma boa coçada, virou de lado e dormiu novamente, esquecendo de se cobrir. O morcego, que há pouco voara sobre a fogueira, agora se pendurava sob uma das traves do telhado de sapê. Num vôo lento e certeiro, desceu até a cama do moço e, batendo as asas para refrescá-lo, abriu novamente a ponta do dedinho e terminou a refeição anos antes começada. |