O TERRÍVEL DILEMA DO PADRE ANSELMO

Heringer

Ele nunca pensou em ser padre. Acabou sendo-o por conta dessas estranhas contingências do destino – Eu escrevi destino? Pois Darwin, de quem mais tarde, Anselmo se tornaria um fiel seguidor, nunca corroboraria tal postulado. Mas, deixemos isso de lado, e vamos em frente. Eis que o moço tentara o vestibular por três vezes e, fracassando nas tentativas, caiu na mais profunda depressão. Foi-lhe difícil encarar familiares e amigos. Vendo-o prostrado, chamaram um padre, que prontamente acudiu e se dispôs a ajudá-lo. E lá voltou vezes sem conta, de jeito que se fizeram grandes amigos, íntimos mesmo, a ponto de o jovem Anselmo vir a decidir-se, ele também, pela vida clerical. 

Ao princípio a família relutou um pouco, mas católicos como eram, aceitaram tal fato como um desígnio divino, e chegaram mesmo a estimular. Depois, já padre, Anselmo foi cuidar, perto dali, de uma pequena paróquia de uns mil e poucos fiéis, não mais que isso. 

Conhecia cada membro da comunidade como um pastor que sabe de cada ovelha do seu aprisco. E nada se lhe escapava desse rebanho, que apascentava com laboriosa diligência. Entretanto, o jovem padre – ainda nem fizera 23 anos! – tinha lá as suas fraquezas e dubiedades. Uma delas: a concupiscência. E, não tendo com quem desabafar, carregava consigo, grave e solitário, o pesado fardo. 

Entre os paroquianos destacava-se Anete, jovem viúva, de rara beleza física. E o padre Anselmo não tinha dúvidas de que o tinhoso usava do corpo escultural dela – e todos os demais encantos! – para prová-lo. Só assim para explicar o jeito insidioso com que esta se havia com ele. As confissões que fazia, cada vez mais freqüentes, e que terminavam com o pobre homem em frangalhos – os nervos e músculos tesos e a mente alucinada. Os banhos frios, fora as incontáveis ave-marias que recomendava como penitências, eram os mesmos paliativos que, em desespero, se auto-aplicava. E por isso vivia a martirizar-se e a lamentar pelos vestibulares perdidos. Não devia ter-se feito um padre! – resmungava consigo.

Contando assim não é possível ter-se uma idéia plena da verdadeira extensão do drama que aqui se desenrola. Vamos ao confessionário, ouçamos estes dois, bem de pertinho: 

- Sim, irmã Anete, e o que tens agora a dizer ao Senhor?

- Padre Anselmo (o jeito sensual dela, quase cantando, de pronunciar-lhe o nome - ele jurava - era de forma a destruir todas as reservas morais que ainda dispunha) eu não consigo deixar de pecar. Padre Anselmo – e repetia o seu nome, com lascívia e prazer desmedido - o que posso fazer? O desejo é mais forte que eu mesma, o senhor me perdoa? E depois de ouvir dele que o perdão provinha de Deus e não dos homens, ela continuava a torturá-lo....

- Ontem, no banho, eu me proporcionei prazer. Pequei, Padre Anselmo!

- Oh! irmã... oh! meu Deus... e de que forma foi? Usou algum instrumento? Ou fez com as mãos? O excitado sacerdote gotejava suores em bicas - e ela não podia ver a intensa ereção que ostentava sob a pesada batina! Revolve-se na luxúria este homem de Deus, carnal e pecador; e faz perguntas sensuais pra ela, que responde maliciosa e com minúcias, e ricos detalhes de corar ao mais vil libertino. Os dois retiram prazeres inomináveis destes colóquios que trocam despudoradamente, e ao fim, embora a condene veementemente por seus atos libidinosos, e confirme a masturbação como sendo um pecado hediondo, execrado pela Santa Igreja, ele próprio, nele se macula, como fazia, no passado, o bíblico Onan, que também lançava por terra a sagrada semente da vida.

Padre Anselmo vivia um terrível dilema. Sabia que a qualquer momento cairia, vítima desta serpente sorrateira, e danada de bela! e tão sagaz quanto a outra, do Éden, a que tentara Eva, trazendo desgraças pra toda a humanidade. O seu mundo ruiria por completo caso cedesse. E crenças arraigadas podem desfazer-se como simples devaneios, pensava, relembrando Freud. E resistia como podia, o pároco, bravamente.

Dormia, numa noite, o sono dos santos, e talvez até sonhasse com coisas puras e angelicais - há muito deixara de ter poluções noturnas, que lhe trouxeram, em outros tempos, muitas culpas e desassossegos à alma aflita. Deixou de tê-las, as poluções, quando, desprezando bulas e admoestações papais, permitiu-se prazeres com o auxílio das próprias e habilidosas mãos e, mais raramente, usando de apetrechos que ele mesmo confeccionava, e que depois, culposo, abandonava-os por julgá-los demoníacos - portanto, dormia profundamente este homem e nem percebeu quando bateram à porta. Bateram, de novo, insistentemente... TOC, TOC, TOC... e então acordou, assustado... olhou no relógio sobre o móvel da cabeceira... e mal distinguia as horas: eram quase duas da manhã!

Atendeu, depois de solicitar ao inoportuno visitante que se identificasse. Descobriu ser o pequeno Antonio, filho da fogosa viúva; que mandava dizer que, apavorada, solicitava-lhe a presença com urgência. - Do que se tratava? perguntou desconfiado, ainda aturdido pela brusca interrupção do sono. O garoto, de apenas oito anos, explicou, como podia, que um bicho estranho entrara no quarto da mãe, e que de lá não queria sair, e que ela se assustava muito todas as vezes que o animal tentava alçar vôo ou se mexia, fazendo um grande barulho. Parece que se amoitara por sobre o guarda-roupa...

O padre percebeu que o menino falava a verdade, e que era aflito e ansioso. Ainda assim desconfiava das verdadeiras intenções da mulher, sua mãe, e foi incapaz de evitar o desejo intenso que crescia dentro dele; de estar lá, na casa, altas horas, na alcova da bela senhora. – Que roupa usaria? Como estaria penteada? E com que perfume o receberia? E mortificava-se por pensar em tais vilanias e por ter desejos tão mundanos. Está desperto agora, e vai com o menino; e tem todo o cuidado de não falar pelo caminho, não quer chamar atenção. A cidade toda dorme um sono só, menos a viúva!

A linda mulher recebe-o com os seus brilhantes cabelos longos e negros derreados sobre a camisola fina, e que, se nada transparece, deixa antever dois volumes generosos de seios firmes e delicados. Está agitada. Diz que um bicho esquisito entrou de repente por uma fresta e se aninhou sobre o armário. E anda lá a fazer uns sons esquisitos. Padre Anselmo fala, com voz firme e decidida, que ela não se preocupe. Que cuidará de tudo, e irá retirar de lá o intruso, que provavelmente é apenas uma corujinha... ou outro qualquer pássaro da noite.

Agora, mais aliviada, ela fixa os olhos na calça jeans que ele veste, e que é justa, e lhe cobre as pernas musculosas e bem torneadas, e então sente formigar no corpo o desejo, que se instala forte e atrevido. Por conveniência, ordena ao filho que espere na sala... - o bicho pode ser perigoso!

O homem pede uma escada, que não há... - Serve uma cadeira, ele diz condescendente, no que é prontamente atendido. Ao subir, ela faz menção de ajudá-lo, mas, indecisa, não sabe se deve ou pode tocar-lhe o corpo, que agora se equilibra, na ponta dos pés, tentando alcançar o animalzinho. Ele percebe a indecisão, e sugere a ela que, precisando... se ele escorregar... que o ampare. Encorajada, a moça se aproxima resoluta e retém-lhe ambas as pernas num abraço único, ousado e cheio de outras intenções. O contato dos corpos acelera-lhes adrenalinas, que percorrem as veias, e tornam-lhes os poros e pêlos extremamente sensíveis e todos os sentidos ficam aguçados.

Encontrou finalmente o animalzinho, que se enroscara num pano, que o prendera feito uma rede. Trata-se de um pequeno morcego, de espécie benéfica, frugívora, e vendo-o, ela solta um grito de espanto e asco. O bom padre, compassivo, mostra-lhe o inocente bichinho e explica que é inofensivo. Leva-o depois à sala, para que o pequenino Antonio possa vê-lo e aprenda, também ele, a respeitar os animais. O padre tem grande apego à natureza e à sua extraordinária diversidade. Também é um estudioso, que compartilha e aprova as muitas e revolucionárias teorias darwinianas.

Por um breve momento o animal atrai todas as atenções até que o libertam, pela janela. Voa; ganha o espaço infinito... está livre outra vez! Feito o trabalho, ele estende a mão, pra se despedir. Ao perceber-lhe a intenção, ela insiste em preparar um café... fizera um bolo ainda à tarde... depois ele iria... e, a seguir, leva o filho ao quarto e o coloca na cama, para que durma.

Sozinhos, ao redor da pequena mesa da cozinha, falam de bichos, receitas de bolos e cafés; também falam sobre fé, vocação e... amor. À meia-luz - ela cuidara de deixar acessa somente a luz suave de um abajur – ele podia ver a beleza incomum desta mulher, pujante, cheia de vida e excelente saúde. Pergunta-lhe, agora mais intimista, porque não se casara novamente. Ela alega razões de ordem pessoal que nada esclarecem... e confessa o intenso desejo que nutre por ele. Mais ardente o rumo da conversa não poderia ficar, e o homem bem que ainda tenta, lutando como se lhe dá, para desvencilhar-se dela e dali partir... antes que...

E antes que o consiga já os lábios dela alcançam os seus e tudo o que se segue é uma avalanche incontrolável entre duas criaturas, que nas veias guardam genomas, que se buscam desde as mais remotas eras, com fins específicos e claros de procriação.

Estes genes, responsáveis pelas maiores conquistas da humanidade, também o seriam por suas mais homéricas tragédias. E aqui não era diferente. O romance que aconteceu entre os dois aqueceu-se a tal temperatura, que ferveu, vaporizou e explodiu, rompendo todas as barreiras possíveis. A pequena comunidade levou muito tempo para refazer-se do terrível escândalo. Os principais envolvidos e suas respectivas famílias, por certo, pagaram preços ainda mais elevados.

Anselmo e Anete moram agora, longe dali, e com eles, o Antonio, que deixou de ser pequeno, e se prepara para a faculdade; e há duas novas crianças, que lhes nasceram posteriormente. A batina é coisa esquecida, do passado, e Anselmo tornou-se um professor respeitado e querido nesta nova comunidade. Ninguém dali sabe a sua história. E os prazeres da carne não lhes são mais negados ou proibidos, embora o desejo e atração, em ambos, venham decrescendo paulatinamente com o tempo; mas, até pra isso, tanto Darwin quanto Freud, têm boas e excelentes teorias que elucidam estes e muitos outros comportamentos humanos.

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