DA SÉRIE BARRADOS NO PARAÍSO
Doca Ramos Mello
Há diversas teorias sobre a origem do homem e do mundo, mas o grosso da população cerra fileiras no bloco de Adão e Eva, com o enredo dos sete dias mais a maçã. Quando eu era criança e estudava sob a batuta de severas freiras franciscanas, ficava arrepiada ao imaginar Deus criando tanta coisa, me preocupava com mil detalhes e, quando chegava na parte da costela de Adão, me batia um frio nas pernas (aquilo devia ter doído!), que aumentava ainda mais diante da questão maior, curiosidade sem fim que me tomava os nervos... Afinal, por que diabos não se podia comer daquela maçã? Ousava concluir com meus botõezinhos infantis, Deus não me castigasse, que Ele queria mais é que Adão e Eva desobedecessem... Arráá, boto esta frutinha aí, proíbo, as danadas das criaturas não respeitam a ordem, acabo com eles... Só pensava, não era besta de abrir a boca, naquela época ainda não existia esse negócio de Estatuto da Criança e a freira me esfolaria viva com todas as bênçãos de minha mãe que, depois, me cobriria de sermão, três dias sem brincar na rua, etc. Entretanto, eu só fazia torcer por um final diferente, a dupla bonitinha naquele paraíso todo, desprezando a árvore fatídica; me apegava a Eva, vamos lá, não me desampare, tire esse homem daí e vão dar uma voltinha, comer umas jacas, umas carambolas... Qual! Justo Eva incentivava o sujeito, os dois traçavam a maçã fatal e Deus, que já estava de butuca, apontava-lhes o olho da rua, fora, cambada! Desesperada, eu ia adquirindo a consciência de que, com tais pais originais - eram nossos pais! - nossos destinos não poderiam mesmo ser grande coisa, ai de nós... Até hoje, sou capaz de sentir o clima de terror da garotada diante da tragédia anunciada. Estarrecidos, perguntávamos baixinho uns aos outros: "E agora?" Tudo isso passou. Traída por Eva desde tenra idade, habituei-me a não esperar muito de ninguém (ou esperar tudo, depende...) nem questionar certas origens: não compensa. Paralelamente aos ensinamentos bíblicos, fui inventando perguntas, consertando a criação, sugerindo hipóteses, como se pudesse, de verdade, modificar as coisas que me incomodavam - assim me pesava menos o conhecimento das tramas. Costumava, por exemplo, imaginar se Noé teria feito, um estudo de prioridades na escalação dos bichos, se não teria havido penetras na arca, ou de que modo a embarcação suportara o peso dos elefantes... Estou relembrando tudo isso à beira do mar, sob um sol delicioso de rachar coco, graças aos lamentos sonoros de um turista da capital, que pragueja pelos quatros cantos da praia, exibindo as pernas branquicelas repletas de mordidas de pernilongos e borrachudos. E porque isso é uma esculhambação, é a prefeitura daqui que não presta, que falta de higiene, depois vão se queixar da queda do turismo, e ai, e ai, e ai... Aponta para o rostinho da filha, as faces de porcelana feito um mapa de pontos vermelhos, vê se pode?! Ele fala alto, gesticula, faz um escarcéu. Então eu penso comigo, e Noé haveria de ter controle sobre bichos voadores tão pequenos? Devem ter-se infiltrado na arca, pegaram carona na moita. ...Mas o dia está belo, o mar se deita azul com bordas espumantes, sopra um ventinho gostoso de sul, impossível resistir ao clima, e o homem vai-se acalmando aos poucos, baixa o tom e se deixa seduzir pela visão das moças vestidas com biquínis reduzidos, os corpos bronzeados a rebolar no passeio de areia... O homem então estende a toalha sob o chapéu-de-sol e chama a filhinha para se deitar na sombra. Ela tira as bóias dos braços, acomoda o balde de brinquedos e solta o corpo branquinho sobre o tecido felpudo. Olha para a copa da árvore e grita: "Pai, tem um bando de vampiro pendurado ali, socorro!" Ai, o que não faz a tv com as pobres crianças das metrópoles! ...E são apenas morcegos silvestres, uma família inteira dormindo na boa, legítimos descendentes de outra dupla esperta que cavou uma carona, enquanto Noé checava os hipopótamos. |