FANTASIA DE MENINA
Beto Muniz

 

Emilia era mocinha casadoira, porém temia o destino que lhe fora reservado. Desde pequenina aprendera com a mãe os ofícios do lar. Aos cinco anos já se encarregava de ressuscitar o braseiro no fogão a lenha. Toda manhã, antes do sol nascer, era despertada pelos ruídos dos pais e irmãos que se preparavam para a lida. Sabendo de seus deveres, ela erguia o corpo de sobre o colchão feito com palha de milho e, descalça ainda, ia para a cozinha colocar gravetos sobre as cinzas quentes de ontem. Se ainda restasse alguma brasa, facilitava a tarefa. Bastava assoprar que as cinzas voavam contra seu rosto sonolento entrando pelos olhos e narinas, mas deixando a brasa limpa para alimentar a combustão nos gravetos secos. Não havendo brasa viva, Emilia teria que ir até o paiol, a pouca distância do casebre, amealhar um tanto de palhas que seriam habilmente posicionadas sob os gravetos e iniciar o fogo a partir delas. Sem dúvida ela preferia encher os cabelos com cinza amanhecida a ter que enfrentar seu medo do escuro. Se bem que Emilia nem tinha tanto medo assim da escuridão, seu pavor era pensar que qualquer dia um ruído, um ranger de porta, um gemido à toa poderia despertar o príncipe das trevas que assumia a forma de morcego e vinha repousar de aventuras pelo mundo no escuro do paiol. Emilia soube da maldição que aquela criatura carregava e da sua fome por sangue através das revistas antigas que lhe chegaram as mãos por intermédio da prima. Nas mesmas revistas descobriu também a razão do poderoso vampiro utilizar a viga principal do paiol como morada. A razão era ela - Emilia idealizava que sua sina era desposar o príncipe das trevas. Uma madrugada qualquer ele abriria suas asas negras e numa metamorfose demoníaca tomaria a forma de um lorde, desceria das sombras até sua amada e tomaria suas mãos, seu sangue, seu corpo e sua alma. Ela sabia que seria impossível resistir, sabia que se entregaria ao demônio que aguardava apenas ela se tornar moça. A certeza do destino que lhe fora reservado acalentava seu medo quando ela considerava a hipótese de que seu senhor estaria ali para zelar por ela, não deixaria mal algum atravessar o seu caminho. Com mínimos ruídos possíveis a menina recolhia as palhas e apressada deixava o paiol à disposição do morcego, que imune ao devaneio infantil apenas dormia.

Com o fogo trepidando sob a chapa de ferro a mãe entrava na cozinha, tossia, depositava o galão de leite no primeiro buraco da chapa e sentava na única cadeira disponível. Emilia ajeitava o corpo nas pernas da mãe e tinha alguns minutos de carinho mudo. Só o tempo de o leite ferver, mas eram os minutos mais gostosos do dia. Por este breve momento valia a pena estar com a boca, narinas, olhos, ouvidos e cabelos estorvados de cinzas. Ou ter enfrentado o medo do paiol às escuras para recolher palhas secas. Acarinhada dentro do abraço, Emilia constatava apavorada que o colo da mãe estava cada dia menor e se encolhia o máximo possível. Antes de soltar um suspiro ela ainda se resignava por saber que quando não coubesse mais no colo materno seria moça formada. Pronta para se casar.

 

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