COMPOSTA DE PALAVRAS
Pedro Brasil Jr

Aquela manhã tinha em si algo de estranho. Embora houvesse um sol bonito e raras nuvens no céu, havia uma estranheza qualquer...

Me debrucei no parapeito da janela, olhei para os lados e ajeitei as venezianas encostando-as junto à parede. Foi aí que descobri a melancolia daquela manhã aparentemente tranqüila: o vento! 

Sibilava uma canção triste e circulava paulatinamente. Até os cachorros podiam sentir qualquer coisa além dos olhos. Respirei fundo e oxiginei os pontos mais profundos do meu ser. Havia uma jornada pela frente e a melancolia do dia não poderia se apoderar de mim. Foi neste instante que vi se aproximar um desses carrinhos de catadores de papel. Ele chegou em frente de casa, remexeu o lixo, catou alguns papelões, ajeitou do jeito que sabia, tirou da cabeça um boné surrado e deixou à mostra um bom tanto de calvície. 

Fiquei observando o homem e, ao mesmo tempo, divagando sobre os porquês da existência dessa gente sofrida que vive à margem. Mas vive!

Decidi então doar a ele alguns jornais, umas calças que já não usava, uma blusa e daí, acabou surgindo uma conversa um tanto proveitosa:

- Pois é, doutor ! A gente luta muito, mas vale a pena viver assim mesmo !

- O senhor mora longe?

- Vila Pinto! Conhece ?

- A vila? Claro!

Rimos da colocação, não havia como .

- Pois é, eu sempre vejo vocês pelas ruas, carrinhos abarrotados... dá pra sustentar a família?

- Não é muito o que se ganha. Uns 8 reais por dia. As vezes 10, por aí...

- E sua casa, como é ?

- Ah! O barraco? Tá lá, em pé. Meio pau-a-pique, sabe, mas tá em pé. Aliás coisa que tem que ficá em pé é o pau, o senhor não acha?

- Tenho certeza !

- E sabe? A minha mulher não reclama de nada. Ela sai sempre comigo, mas hoje fiquei sozinho. Ela tá com o mal-dos peitos...

- Coração?

- Não! Ela disse que foi no postinho de saúde ontem, tava com dor.

- É grave então?

- Sei não, sabe? Tô achando que é conversa pra boi dormir.

- E o boi neste caso é você?

- Que é isto, homem? Eu sou burro-sem-rabo. Essa coisa de boi pode pegá mau, né?

- Eu não quis ofender !..

- Ah! Não se avexe! Eu já sofri do mal-dos-chifres...

- Ih! Então tem disso também?

- É ! Era outra muié. Não me ajudava, ficava no barraco bundeando, abrindo as pernas à toa. Aí já viu? Mas passou...

- E teve algum outro mal ?

- Ah! Já sofri do mal-do-veado...

Aí, as gargalhadas não puderam ser contidas. Tava ali alguém muito engraçado, contando, quem sabe? - verdades ou mentiras. Mas estava divertido.

- Mal-do-veado? - É... hemorróida?

- Hemorróida? Que é isso?

- Xíííí! Agora complicou. Mas vou explicar.

- Ah! É isso? - Não, não! Que é isso, tá me estranhando ?

- Não! Mas pensei.... de repente, né?

- Mal-do-veado é tétano! Quase me fui !...

- Hummm! Bem, mas já que venceu esta, o que se passa agora ?

- Comigo ?

- É ! Você, a mulher, o mal-dos peitos...

- Ah! Bão... Sabe? Eu tô achando estranho afinal, cachorro mordido por cobra tem medo até de lingüiça, né ?

- Então fica difícil trabalhar tranqüilo ?

- Ah! Quer saber? Eu nem ligo... as vezes me enrosco com umas outras por aí, sabe como é...

- Hummm! E fora o trabalho, o que mais você faz?

- Quando dá, vou pescar. Mas não sou mentiroso, viu?

- E pesca onde?

- Vou de magrela lá pras bandas de Piraquara .Tem uns rios bons, pesqueiros bons pra gente molhar as minhocas.

- E pega muito?

Ele riu de leve.

- Que é isto doutor - tá me estranhando?

- Peixe né, do que estamos falando?

- Pega pouco, as vezes da pra garantir a mistura da semana. O problema são os espinhos das traíras. O senhor também pesca?

- É raro! Mas prefiro na beira do mar..

- Já pesquei ali também, no mar. Isso foi quando morei em Salvador.

- O senhor é baiano ?

- Sergipano! - Mas lá de cima, todo mundo é gente boa. As lembranças são muitas... E o que o senhor pesca?

- Eu aprecio as pernas-de-moça, as cavalas-verdadeiras..

- Eu também ! E vejo tantas todos os dias...Tem umas dona que ó..caldão!

- Mas eu estou falando de peixe...

- Eu sei, mas é que os seus peixes aí lembraram outra coisa...

- E lá onde o senhor pesca as traíras, tem muito pássaro ?

- Tem uns coleirinhos, uns pintassilgos, umas codornas...As vezes a gente pega algumas...Dá aquela janta!

- Já pegou alguma rola-de-são-josé ?

- Que é isso homem? Tá me estranhando de novo ?

- É só uma pomba, ora!

- Mas que soa estranho soa. E depois, a gente vai mesmo é pescar!

- É.. mas o lugar tem outros bichos, daí...

- Tem mesmo ! Já encarei cachorro-do-mato, enxu-da-beira-do-telhado e cobra-de-duas-cabeças. Essa dá medo mesmo!

- Esta nunca vi ! Nem sabia que existia..

- Existe o bicho. Ou melhor, a bicha rasteira...

- Pelo visto o senhor já rodou de norte a sul, conhece das coisas...

- Tô com 54 nas costas. Já me meti em cada matão....Já vi cada bicho feio... Já encarei até homem brabo com facão de mateiro. Um golpe e é buraco na certa.

- Onde foi isto ?

- Lá na Paraíba. Tinha um paraibano que só tomava cachaça curtida com escorpião. O homem era o capeta em figura de gente. Um dia, sem saber da fama do dito cujo, acabei me enroscando com a fera num boteco. Olha, nunca corri tanto na minha vida. A corrida foi tanta que passei pela divisa de estado. Fui embora, acabei em São Paulo e lá sofri muito. Agora tô aqui, mais velho, mais tranqüilo ou melhor; quase tranqüilo pois, como lhe disse, tô meio desconfiado da Das Dor.

- Das Dor ?

- Ah! Minha muié...é o nome dela. Das Dor. E sabe?- Combina com a fia da mãe. Vive com dor aqui e alí. Sei lá...é tanta dor, né?

- Não sei! Nesses assuntos, prefiro ficar de fora!

- O senhor tá certo! E sabe, logo vou pra casa. Se foi o que tô pensando, vou fazer o chico-das-dores trabalhar um pouco.

- Chico-das-dores ? Quem é ?

- O meu chicote, oras !

- O senhor tá louco? E a polícia? 

- Dá nada não ! A safada até gosta !

- E se ela for honesta, direita ? E se tiver mesmo doente ?

- Bem; aí vou preparar uma maravilha-do-sertão e ela vai ficar muito boa!

- Maravilha-do-sertão ?

-É um chá ! O danado é feito com as flores da catinga-de-porco. É tiro e queda !

- Mata?

- Não! Pelo menos não pelo efeito do chá. Mas se o sujeito não der no couro, pode saber, vai ficar mortinho, mortinho...

- É ..o senhor é bem milongueiro ?

- Milongueiro ?

- É...uma espécie de feiticeiro, essas coisas..

- A gente faz aquilo que aprendeu, né?

Nesse instante, ele pegou um toco de fumo e começou a picar. Ofereci um cigarro. Ficaria mais fácil. Ele pegou, acendeu, baforou e disse:

- Puta merda ! Como é bom um cigarrinho, né? Espairece. Faz mal mas espairece!.

- É..eu concordo!

- Pois é seu...

- Pedro !
- Pois é seu Pedro, a proza tá muito boa mas sabe, ainda tenho que catar muito papel por aí e ademais, tô mesmo preocupado com a Das Dor. Sabe? Ela é meio esquisita mas na hora do vamo vê, é coisa do outro mundo. Daí a gente se apega, fica querendo mais, essas coisas...

- Mas ... e se ela tiver pulando cerca ?

- Home do céu, agora tô com uma faca de dois gumes. Se ela tivé mesmo pulando a cerca, lá vou eu sofrer do mal-dos-chifres de novo e continuar rodeado pelos amigos-da-onça. Mas se ela não tivé, vou ficar de olho bem aberto, quinem mocho-orelhudo. Nunca a gente sabe de fato se a nossa muié é uma maria-sem-vergonha. O senhor também abra o olho, hein?

E lá se foi o dito burro-sem-rabo para suas andanças. E eu fiquei parado no portão rindo daquela conversa tão esquisita e também, tão engraçada. Até o vento mudou o sibilar e o sentido. Agora, as venezianas abriam e fechavam como se também estivessem a rir da conversa.

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