FACA
DE DOIS GUMES OU A ESCAPADA
Mauro Pereira da Silva
Foi uma tarde maravilhosa, com um sol cálido no céu de São Paulo, a poluição não estava muito densa, o transito fluindo bem e ele, tranqüilamente sentado no seu carro do ano. Tudo muito bem.
Inclusive a morena maravilhosa que estava ao seu lado. Haviam saído de um motelzinho simpático, próximo à Marginal Tietê, e ele constatara o que já havia desconfiado: ela era de arrasar na cama. Suculenta, maravilhosa, inacreditável.
Como gerente de banco, tinha a facilidade de, ás vezes, "visitar clientes", com almoço e combustível pago. O motel ele tinha de desembolsar, mas valia a pena, por ela, aquele monumento que estava ao seu lado, motivo de cobiça de clientes e colegas do banco. Até o Gerente Regional já tinha tentado algo, mas ele, João Carlos, era o dono da banca e ninguém mais.
Quando saiu do motel, olhou automaticamente para os lados, adentrou a pista que dava acesso à Marginal Tietê, e por azar pegou o farol vermelho, logo na esquina do motel. O único inconveniente era esse. Saia-se daquele motel e se desse azar, já pegava o sinal vermelho a menos de cem metros. Mas tudo bem, ele estava profundamente calmo... Começou a acariciar os cabelos da morena, deu-lhe um beijinho de leve, quando notou, também parado esperando semáforo abrir, duas filas de carro ao lado, o fusquinha azul geladeira do seu sogro.
O sangue gelou, sua pressão foi a vinte. O desespero tomou conta dele. E o maldito farol não abria. O pior é que o sogro, notando-o ali, com outra mulher, fazia esforços grotescos com o pescoço na tentativa de confirmar sua suspeita.
Chegou a abrir a porta na tentativa de dar-lhe um flagrante, mas, Graças à Deus, que não desampara um filho seu, o farol abriu.
Quem mora em São Paulo sabe como é uma fila de carros á espera do farol abrir. Parecia que uma porteira havia sido aberta e uma manada enlouquecida, tomada por fúria bestial, havia passado por ela.
Ele engatou a primeira e saiu cantando os pneus. A morena não entendeu nada e nem ele explicou; não era preciso.
Ao chegar em casa, o circo estava armado. A sogra estava passando mal, e sua esposa histérica. O maldito velho o havia dedurado.
- Aí vem o canalha, minha filha, não dê trégua.
Foram atirados pratos, copos e ele habilmente se desviando. A sogra tentou agredi-lo com uma vassoura. A empregada gritava. Até o cachorro latia, uma confusão dos diabos.
- Você teve a coragem, maldito! Eu já desconfiava.
- Calma aí, o que está acontecendo por aqui. Vasculhou a memória e procurou a cara mais inocente de que se recordava.
- Cínico! Papai me contou tudo!
- Contou o quê? Não estou entendendo! Largou a maleta sobre o sofá e tentou dar um abraço da esposa, que se desvencilhou.
- Ah, não está entendendo? Ele te pegou saindo de um motel, na Marginal, com uma sirigaita.
- Isso é um absurdo. Sou completamente inocente.
O sogro estava apopléctico, a careca vermelha. Suava.
- Não adianta negar, João Carlos, eu te vi, com esses olhos que Deus me deu.
- O senhor sempre me detestou. Sempre foi contra meu casamento. Agora usou uma cara de vítima. Precisava caprichar.
A esposa, que estava abrindo as gavetas, à procura de uma faca, gritou:
- Antes eu tivesse escutado papai. Não passaria por esta situação. Onde está esta maldita faca?!
- Andréia, pelo amor de Deus, que historia é esta de faca, meu amor? Isto é ridículo, meu bem. Você sabe que só amo você!...
Ela estava transfigurada.
- Papai jamais inventaria isso. Vou te matar, vou te matar!
A sogra, que tentava segurar a filha, dizia:
- Filha, não vale a pena. Larga esse canalha. Eu sempre te falei que ele não prestava. Desde a época de namoro.
- A senhora também não se meta. Vocês estão destruindo meu casamento - ele gritou. Sentia que se não revertesse a situação, seria derrotado em seu próprio campo de batalha.
- Meu amor, fui visitar um cliente.
- Que cliente coisa nenhuma. Me solta, mãe. Cadê as facas desta casa?
- Benzinho, estou sendo vítima de um engano. Seu pai deve ter se enganado.
- Não me enganei coisa nenhuma - gritou o velho, estacionado na porta da sala. - Prestei bem atenção, inclusive na placa do carro. Era você sim!
- Maldito, eu que sempre fiz o possível, sempre economizei, sempre procurei ser uma boa esposa. Me solta, mãe. Cadê as facas? Maria, onde estão as facas? A essa altura, as gavetas já tinham sido jogadas no chão, causando um barulho medonho.
A empregada, que já havia se cansado de gritar, estava paralisada num canto da cozinha, completamente abestalhada com aquela situação, nem sabia o que responder. Não queria ser cúmplice na morte de um marido aterrorizado.
- Que faca, meu amor, deixa disso. Foi um engano.
Ele já estava se arrependendo das horas passadas, entre gemidos e gritos da morena. Que merda, será que não podia nem se divertir um pouquinho?
- Meu amor, não era eu, não era eu! Me escuta.
- Era ele sim, milha filha, era ele.
- Cala a boca, velho retardado. Você vai destruir meu casamento.
- Covardão! Assuma seus atos. Era você, tenho certeza absoluta. O sogro falava da porta da que dividia a sala da cozinha, provavelmente com receio de chegar muito perto do genro.
Súbito, acendeu-lhe a luz da perspicácia. Salvação à vista!
- Um minuto aí. Você estava de óculos?
O velho hesitou.
- Óculos?..
- Isto mesmo, você estava de óculos? Ele sabia que o velho apesar de não enxergar quase nada, detestava usar óculos.
- Bem... não me lembro...
- Como? Não se lembra? Tá vendo, meu amor, seu pai afirma um absurdo deste e sequer estava de óculos.
A esposa parou de procurar a faca e fuzilou o pai.
- Papai, o senhor estava sem óculos?
- Bem...não tenho certeza se estava...
Era a chance de arrasar com ele.
- Você está vendo, meu amor? Ele não enxerga um palmo adiante do nariz sem óculos e afirma ter certeza que era eu. Ponha a mão na consciência, você está destruindo um casamento de dez anos.
- Papai, o senhor me falou que tinha certeza. Estava sem óculos?
- Olha, eu acho que estava de óculos.
- Onde estão seus óculos? Perguntou João Carlos. Não podia vacilar, tinha que dar o golpe fatal.
O velho olhou para os lados, apalpou os bolsos, procurou em cima da mesinha da sala, sobre a estante e percebeu que não havia óculos nenhum.
- Devo ter deixado em algum lugar.
- Está vendo, meu amor. Ele estava sem óculos.
O velho estava desesperado. Viu sua moral ir esgoto abaixo.
- Destruidor de lares, velho debochado! Acusar um homem de bem, sem ter certeza.
Aproximou-se da esposa, que já estava arrependida, percebendo que havia cometido um engano.
- Meu amor, eu jamais faria isso - insistiu.
- Filha, eu tenho certeza! - gritou o pai
- Cala a boca, papai. Sei que sem óculos, o senhor mal enxerga as placas de trânsito, quanto mais a placa de um veículo a alguns metros de distancia.
- Meu amorzinho, você é a única no meu coração. Como pode desconfiar do seu maridinho?
Abraçaram-se. O velho estava boquiaberto. A sogra começou a brigar com o sogro. A empregada não estava entendendo nada.
Faltavam duas horas para o jantar.
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