REFLEXOS NA LÂMINA
Luís Valise

 
 

O filete de sangue já estava coagulando, e mesmo assim as varejeiras insistiam em beber do líquido brilhante e pegajoso que escorria do corpo coberto por jornais. Pequena multidão de curiosos circundava o defunto junto à banca de revistas. Palpites sobre a causa da morte. A única certeza era o buraco na sobrancelha esquerda: tiro. O rosto não fora alterado pelo ferimento. O estrago estava na parte de trás da cabeça, onde uma lasca do crânio fora arrancada junto com pedaço do couro cabeludo, expondo partes amareladas de massa encefálica. Como de hábito a polícia técnica demoraria a chegar, e o corpo ainda ficaria exposto longas horas ao sol e à avidez mórbida dos passantes. Do outro lado da calçada ficava o prédio onde ela morava, e das janelas os moradores lançavam olhares de superioridade.

(Ela fora para o banho tão logo acordara, e ainda não sabia do corpo caído na rua. Pensava num e noutro, não lembrava bem com qual sairia naquele dia. Fazia malabarismos para que um não soubesse do outro. Não queria magoar nenhum dos dois, e além disso gostava de cada um e suas diferenças.)

Um PM desceu da viatura e abriu a roda: “Circulando, pessoal, circulando!” Não adiantava muito. A massa dava alguns passos para trás, e logo em seguida voltava a se juntar. Alguém acabava pisando no sangue, e a calçada ia ficando parecida com uma tela de Mabe.

(Um e outro cresceram na mesma rua, e suas diferenças se complementavam na convivência fraterna. Se um era bom de bola, o outro era craque na natação. Um preferia basquete, o outro vôlei. Jogavam no mesmo time do colégio: um na linha, o outro no gol. Inseparáveis. Amigos do peito.)

Em volta do corpo, alguém fatalista: “Ninguém está livre disso.” Já um outro, conformado: “Quando chega a hora, somos todos iguais.” Alguém, precavido: “Cuidado. Temos que ter cuidado.” E o fanfarrão: “Eu caio, mas caio atirando!” A calculista: “Pior meu vô, entrevado numa cama, com derrame!” Todos tinham razão.

(Comemoraram juntos a entrada na faculdade: direito e engenharia. Depois de formados, num happy-hour, ela entrou no bar. Amores à primeira vista. Secretos. Pela primeira vez um não contou ao outro, que segurou o coração nos dentes. Ela, dividida, se dividiu em paixões, e deu de sair com os dois, sem que um desconfiasse do outro. Isso não acabaria bem.)

Debaixo do jornal o corpo enrijecia. O braço dobrado sobre o peito daria trabalho. Antes de receber a bala fatal ele olhou seu assassino no rosto, de frente, inutilmente. A mão que segurava a arma não tremeu. Ele também não sentiu o tremendo tranco que jogou sua cabeça para trás. Tudo tinha sido muito rápido.

(Enquanto enxugava os cabelos, ela teve certeza que hoje sairia com o outro. Sorriu para o espelho na premonição do gozo docemente calmo que viria. Voltando para o quarto, escolheu a roupa que ele tiraria com suavidade. Ao aproximar-se da janela, deu de cara com aquele corpo estendido. Sentiu um arrepio. Fez o pelo-sinal.)

Ele não andava armado, e mesmo que andasse, de nada serviria, pois o outro surgiu inesperadamente. A troca de palavras foi brusca. Ele ainda pensou que o outro se arrependeria, afinal não era para tanto. Que nada! Determinado, o outro ergueu o revólver até a altura do seu próprio rosto, e atirou.

(Enquanto se maquiava, apreciava seu rosto delicado, de linhas discretas, beleza sóbria. Nem ela mesmo acreditava do que era capaz! Imagine, sair com os dois! Uma louca, isso que ela era, pensava e sorria um sorriso maroto. Mas também, como escolher? O mar ou a maré? A lua ou o luar? O sol ou o calor? Uma faca mágica dividia seu coração em dois. O batom avermelhou o que já era quente. Ao fechar a janela olhou mais uma vez o cadáver. Chegou ao térreo, e antes de pegar seu carro, saiu à rua, atravessou a calçada e aproximou-se da roda, que ao vê-la chegar, abriu espaço como a alguém da família.)

Levantaram outra vez a folha de jornal que cobria seu rosto, e ele não pôde reclamar. Os olhos que não viam não viram o rosto discreto, a boca vermelha, o sinal da cruz.

(Dentro do carro, trânsito lento, ela ligou para o outro e confirmou o encontro. Talvez isso não acabasse bem, mas que fosse bom enquanto durasse.)

Quando a técnica chegou, os curiosos tinham diminuído. Alguém disse que o defunto era o jornaleiro, e que tinha resistido a um assalto. Contrariando as expectativas, ainda não fora um crime passional.

 
 

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