OS OUTROS
Beto Muniz

 
 

Fatos ocorridos na infância podem nos acompanhar a vida inteira, moldando nosso pensamento e nos tornando cegos para a verdade de que tudo tem dois lados. Ou mais.

Eu era aluno da segunda série primária quando comecei a pensar que a merda são os outros. As razões desse pensamento pessimista foram os garotos da quarta série. Maiores e cruéis, eles faziam questão de humilhar os da minha série, idade e tamanho. Um dia a presença do professor no pátio do recreio me encorajou a revidar um empurrão e o garoto caiu sobre o canteiro de rosas. Tornei-me um herói durante o segundo período de aula, mas na saída recebi uma chuva de ovos. Chorei todo trajeto de volta para casa. Um choro seco, de olhos vermelhos e ódio latente. Com os cabelos endurecidos, cheguei à conclusão de que a merda eram os outros e desculpei-me pelo minuto de imprudente falsa coragem.

À partir desse dia eu encontrei desculpas para cada episódio malfadado. Quando tirei o segundo lugar no salto em distância, a merda foi que o primeiro colocado calçava tênis mais apropriados. Pudera, o pai dele tinha melhores condições financeiras que o meu.

Quando o Martins beijou a Esther, a merda foi que ele pôde ir à festa de aniversário dela e eu não, pois minha família estava comemorando o casamento de uma tia que eu nem gostava tanto assim. Também quando a Mariana não quis namorar comigo a merda foi o Willian, que só por sacanagem ficou ouvindo nossa conversa, o que me deixou intimidado e constrangido. Quando ele resolveu nos deixar em paz, a merda foi que ela nem esperou eu recuperar o fôlego e já me despachou com aquele ar de superioridade que parecia dizer "você é um babaca".

Quando eu cheguei a São Paulo passei fome e frio morando numa pensão, e a merda era o companheiro de quarto que comia minha comida e usava minhas roupas sem ao menos pedir. Sem esquecer que quando arrumei o primeiro emprego lá na praça do correio, a merda foi aquele assaltante levar todo meu dinheiro e parte da esperança de dias melhores na cidade grande.

Quando me tornei pai, faltou dinheiro para a fralda. Eu cheguei a pensar que a merda era o chefe recusando aumento salarial, mas a felicidade suplantou a necessidade e durante um bom tempo esqueci os outros. Filhos encantam a vida. Quando me separei saí com apenas uma mala e nem cogitei pensar que a merda era que ela e o filho precisassem mais da casa e dos móveis do que eu. O sentimento de responsabilidade silenciou a máxima de infância e fui batalhar teto e conforto calado.

Estava curado, esquecido do pessimismo para com o mundo e para com os outros quando me acidentei de moto. Eu morava sozinho e ninguém sentiu minha falta por dias. Imobilizado por gessos e próteses, fiquei uma semana no hospital recordando mazelas vividas desde a infância até o dia do acidente e novamente chorei seco. Mais uma vez o pensamento de ódio para com os outros voltou a invadir minha mente. Decidi tratar o mundo como o mundo me tratava. Sim, eu seria um inferno na vida dos outros todos. Se não para punir culpados de minhas derrotas, desamores, desventuras e solidão, ao menos para me dar razão por pensar que a merda são os outros - eu seria 'os outros' de alguém!

Amargurei até que terminaram minhas férias e me encontraram no hospital. Amigos, parentes e todos os outros que pensaram que eu estava viajando e vieram se desculpar, me encheram de atenções e carinhos pelo resto de tempo que fiquei acamado. Me desarmaram definitivamente, mostrando o quanto os outros são importantes. Entre um dengo e um cafuné eu resgatei a cena de minha mãe, cheia de zelos, lavando meus cabelos sujos de ovos e dizendo que eu estava certo, os garotos da quarta série realmente eram uns merdinhas, mas seria prudente manter-me longe deles até que tivesse condições de enfrentá-los: "filho, quem mexe com merda acaba se sujando". Conselho de mãe a gente não discute, apenas segue.

Criança ainda, eu segui o sensato conselho de não mexer com os outros, mas mantive o pensamento de que tudo quanto é merda que me acontecia era por culpa deles, os outros. E assim passei a adolescência inteira enxergando apenas os cortes causados por um gume da faca. O outro lado, o gume que não corta, acarinha, comecei a ver só depois de adulto, e isso por culpa dos amigos que fiz.

 
 

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