-
-
- Alfredo,
-
-
- Eu
nem acreditei quando tu me escreveste depois de tanto tempo.
-
-
Estava até esquecendo de sofrer.
-
-
Nunca mais te vi no baile do Enchanted com aquela fantasia de diabo
e o tridente que espetava todas sem distinção de idade ou estado civil.
Nunca mais freqüentaste a sinuca, não te encontrei no carteado do
Aranha. Nem o Motel Beira-Mar tens freqüentado.
-
- Cheguei
a pensar que havias tido um surto qualquer e virado crente. Já te
via gritando “Aleluias”, batendo no peito e recebendo um diabo bem
safado porque disto dificilmente abririas mão. Sei como gostas de
um teatro, meu moreno e não há pastor que consiga segurar o teu encosto.
Te imaginava de Bíblia na mão, pregando Jesus te ama, falando em sangue
de Cristo, logo tu que nunca derramaste em vão o sangue da donzelice
alheia.
-
- Mas
não mudaste nada.
-
- Estavas
só experimentando outros terrenos. Morri de rir quando soube o que
aprontaste como cavalo do Exu-Caveira no terreno de Mãe Dinha de Ogum,
em Salvador. Só tu mesmo, Alfredo, para arrumar confusão no terreiro
do próximo e ainda se engraçar com a mulher do Ogan Maior. Tu me explicaste
que foi só um mal-entendido, a pobrezinha estava apenas consertando
a cinta-liga e tu, prestimoso como és, só querias ajudar. Conheço
teu bom coração com a mulher do próximo e do afastado, Alfredo, ah,
como eu conheço!
-
-
Agora escreves pedindo para voltar, fico na dúvida. É como faca de
dois gumes, coração, não dá para escolher qual menos lâmina. Ficar
longe de ti me deixa noite, perder teu corpo apaga alguma luz em mim.
-
-
Mas és faca de dois gumes, todos dois cortando, todo os dois ferindo.
-
- Eu
deveria dizer que vou queimar a tua carta e jogar no lixo, apedrejar
cada uma das palavras mentirosas, repudiar tuas cantadas tolas, rir
da tua música sempre igual. Eu deveria dizer que vou amarrar cavalos
bravos nos tornozelos, me prender na porta e pregar cravos nas minhas
mãos traiçoeiras para impedir que eu saia, colocar algodão nos ouvidos
e não escutar o canto da sereia. Eu deveria dizer que vou me atirar
no precipício mais propício antes de responder aos teus apelos. Eu
deveria dizer que vou enterrar meu desejo no mais fundo dos túneis,
me cortar de gilete e me arder em fornalhas para impedir meu corpo
de atender teu chamado. Eu deveria dizer que vou rasgar em tiras as
certezas, estuprar cada uma das perguntas, desdenhar os verbos, rir
dos advérbios, me esconder dos adjetivos.
-
-
Eu deveria dizer que vou queimar a cama em que dormimos nosso engano,
salgar o vinho que bebemos nos odiando, destruir as lembranças do
teu arrepio.
-
- Eu
deveria sim.
-
- Mas
às três horas estarei esperando teu ônibus lá na praça e nem que cem
mil cavalos me arrastassem, nada me impediria de te ver.
-
-
Porque ler tua carta mentirosa foi a melhor das receitas para destruir
o ser vil em que me transformei sem seu engano.
-
- Escutar
tuas desculpas é meu vício, coração. Fazer o que?
-
- Sou
faca de vários gumes - todos eles teus.
|