A LEITORA
Roberto Chaves

O ônibus, como sempre, sacolejava. Um festival de depressões, lombadas e obstáculos devidamente atingidos pelos pneus do coletivo, às vezes o esquerdo outras vezes o direito. E dá-lhe dor na coluna, na bacia, nas juntas desjuntadas. 

Numa dessas sacolejadas percebo a beleza de uma passageira. Cabelos negros, óculos pretos, pele branca. E, delícia das delícias, com um livro na mão...

Nova sacolejada me fez pensar que a leitura poderia ser mística, de auto ajuda, de Paulo Coelho, enfim algo que acabasse com minha curiosidade imediatamente. O que uma sacolejada não faz a gente pensar...

Mas, não... A capa, protegida pelo papel vegetal todo trabalhado, transmitia uma beleza digna das mil e uma noites. Seria a versão de sir Richard Burton para os ensinamentos seculares de quem vive na terra do kama sutra?

E aqueles cabelos longos, negros, perfeitos sobre a pele branca...

Seria um intenso império dos sentidos vivido por um moderno casal asiático?

E os cabelos negros, grossos, deslizam sobre a nuca branquíssimia... 

De repente, outro sacolejo e o óculos de estilo "mamãe vou prá escola" da garota acaba voando mais do que minha imaginação naquele momento...

Não há salto mortal ou reflexo que impeça a inevitabilidade da queda ao chão. E a lente se quebra...

Não foi a solidariedade de um míope, nem o magnetismo pelos cabelos longos e negros contrastando com a pele prá lá de clara, quem resolveu se aproximar dela. Confesso, a intenção era saber exatamente o que aquele doce de mal caminho lia.

Mas, no arranque do motor velho, nova lombada, novo sacolejo, novo desequilíbrio, nova queda de lente - agora minha -, nova perda...

Acho que ela sorriu. Acho. Míope, não sei bem a reação daquele rosto. Pior, não sei nada sobre aquele belo livro, aquele bela leitora. Mesmo sem ver direito, ouvi em claro e bom som a campainha sendo tocada, e aqueles cabelos negros, longos, massageando aquela pele prá lá de clara, descendo e se afastando, levando o livro, levando os segredos que não consegui ler...

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