SEXO DOS ANJOS
Luciana Priosta

Tudo perfeito. O entardecer espalhava sua luz suave e mágica pela sala. A imobilidade precária das ondas mornas de vapores que subiam do caldeirão inundavam o ar de um cheiro antigo, de mar e terra molhada. Sorvia-se o ar e imediatamente afogava-se de volúpia e mergulhava-se na música mágica que vinha de algum lugar secreto, de algum navio perdido. As rendas tramadas por mãos de outros tempos espargiam-se pelo chão como espuma. 

Ela chegou. Cabelos negros a derramar-lhe pelas costas. Os pés nus de qualquer adorno. A pele de reflexos azulados e a natureza silenciosa evocavam um habitante marinho. Gestos lânguidos de leveza ligeiramente ensaiada. Mais do que andar, fluiu até ele envolvendo-o em banho morno levando-o a quase perder os sentidos. E a sereia marulhava ao seu ouvido: vem!

- Pô! Já?

- (Soltando um longo suspiro) Achei que se a gente fosse um pouco mais rápido ia dar...

. . .

Tudo perfeito. A luz vermelha de inferninho mal iluminava a cama redonda king size. Um cheiro doce e sensual exalava das rosas espalhadas pelo lençol de cetim preto. O balde de gelo na cabeceira da cama junto a brinquedos de vários tamanhos e texturas sugeriam doces e dolorosas torturas. Do teto pendia uma longa corrente que terminava em um par de algemas. Metallica completava a atmosfera.

Ela chegou. A pele muito branca dando a impressão de que qualquer carícia mais vigorosa a deixaria marcada. O seios apertados num top de couro preto cheio de tachinhas. Pelo lado de dentro. Um shortinho, também de couro tachado, modelava seu belo traseiro. Ela entrou hesitante no quarto, passos cuidados pois que tinha venda nos olhos, e chamou com voz trêmula: Tchutchuquinho?

- Pô! Tchutchuquinho?

- (Sentando em cima das rosas na cama) Ai! Achei que você ia gostar...

. . .

Tudo perfeito. O sol de fim de tarde enchia o quarto de uma luz branca e quente. A brisa agradável ficava por conta do ar condicionado master-mega-plus-qualquer-coisa, último lançamento de verão das lojas Barateiras (o senhor vai ver que beleza, pode levar sem susto!). Bom ar fragrância festa do sol garantia a atmosfera sensual. Bem, foi o que leu na embalagem. Os lençóis coloridos e fofinhos e Red Hot rodando no cdplayer.

Ela chegou. Curvas generosas e perigosas mal tapadas pelo biquíni de crochê cor de pistache (pode levar madame, é última moda!). Os óculos de sol enormes coroando uma cascata de caracóis louros que desciam pelas costas douradas. Entrou insinuante e passou por ele, quase que distraidamente..., deixando cair a canga cor-de-batata-roxa-pra-contratastar-com-o-biquini e ficou esperando.

- Assim não dá, você já tá praticamente pelada, caramba!

- (Mascando chiclete com boca aberta) Mas eu não te chamei de nada dessa vez...

. . .

Tudo perfeito. Os dois sentados em cima do telhado de uma velha fábrica, o céu avermelhado já cedia espaço as sombras da noite. Não pareciam tristes ou alegres, apenas assistiam pelas telas de suas retinas o sol se esconder mais uma vez atrás dos prédios. Aproveitavam para esticar as asas ao sol, tirar o limo das auréolas e embriagar-se da companhia um do outro. Tinham tentado tudo, não é?

De mãos dadas, saudavam com uma pontinha de inveja a gente apressada que passava pelo meio fio a caminho de casa depois de mais um dia de labuta. Gente de todas as cores, cheiros e humores. Gente simples, cheia de problemas existenciais, com a conta de luz atrasada, gente enfim. Nem todos felizes, nem todos amados, mas, ao contrário deles, possuíam o mais poderoso e definitivo afrodisíaco: o livre arbítrio.

fale com a autora

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.