MÁRCIA, A AFRODITE PANTANEIRA
Gil Cordeiro Dias Ferreira

Corumbá, 2 de novembro de 1997

Dia de Finados. Um domingo tórrido.

O grande ônibus parou no Morrinho, para embarcar na balsa que o transportaria à outra margem do rio Paraguai. A ponte ainda estava sendo construída. Durante essa manobra e a travessia, os passageiros não podiam permanecer na viatura, por medida de segurança, em caso de naufrágio. O Cantor suspirou, aliviado. Finalmente poderia fumar um cigarro. Dentro do ônibus não era permitido. E ao longo daquelas mais de vinte horas de viagem, iniciadas à uma da tarde da véspera, as paradas haviam sido poucas. Ele sorriu, ao observar aquele ambiente tão seu conhecido, do qual estava afastado havia quase dez anos. Uma sensação agradável lhe sobreveio. Ele adorava o Pantanal. Vestira-se a caráter, para retornar ali. Calça jeans, camisa axadrezada e os apetrechos que retirara do baú: botas claras de bico fino, cinto largo de couro cru e o chapéu panamá, de abas largas. Viera sozinho. No dia seguinte, o Chefe e o Jockey chegariam, de avião. Ele cantarolou a melodia de Almir Sater:

"Enquanto este velho trem / Atravessa o Pantanal / As estrelas do cruzeiro fazem um sinal / De que este é o melhor caminho / P’rá quem é como eu / Mais um fugitivo da guerra..." / Enquanto este velho trem / Atravessa o Pantanal / O povo lá em casa espera que eu mande um postal / Dizendo que eu estou muito bem, e sigo / Rumo a Santa Cruz de La Sierra / Enquanto este velho trem / Atravessa o Pantanal / Só meu coração está batendo desigual / Porque ele agora sabe / Que o medo viaja também / Sobre todos os trilhos da terra / Rumo a Santa Cruz de la Sierra...

A balsa começou a se movimentar, e ele fixou a vista nas margens, procurando pelas aves pantaneiras, que nunca se cansara de apreciar, e pelos aguapés floridos, que flutuavam nas águas e se deixavam levar pela correnteza. Ali estavam flora e fauna, como sempre. Ele olhou à sua volta, observando seus companheiros de viagem. Tipos humanos que ele conhecia de longa data: os "bugres", humildes, com suas maletas de fibra meio acastanhadas, sempre com famílias numerosas – uma infinidade de crianças - e carregando seus próprios lanches, que inevitavelmente continham peixe frito, conservado no sal por vários dias; as "sacoleiras", que retornavam de São Paulo, trazendo várias malas de roupas para revenda; os bolivianos, de estatura pequena, com suas feições indígenas – eram os "colhas", residentes nos vilarejos mais pobres de seu país, completamente diferentes dos "cambas", louros, altos, descendentes de europeus, principalmente alemães, que habitavam as cidades mais adiantadas, como Santa Cruz, La Paz e Sucre; os inevitáveis turistas americanos e europeus, facilmente identificáveis, por serem também muito louros, vestirem roupas extravagantes para a região e usarem a todo instante sofisticados equipamentos fotográficos e câmeras de vídeo; e muitos militares em licença, que retornavam para suas bases em Corumbá, também distingüíveis pelo jargão, corte de cabelo, porte marcial, o denunciante sotaque carioca ou paulista e o velho hábito de cantar e batucar sambas de pagode. Mas ali, na balsa, o que se ouvia, de um rádio que sintonizava emissora local, eram músicas sertanejas, polcas e "chamamés" – ritmos latino-americanos muito apreciados por aquelas bandas. 

A balsa atracou na outra margem. Ele sorriu mais uma vez, lembrando-se de como a geografia enganosa prega peças em quem não conhece a região. A maioria das pessoas ignora que Corumbá foi edificada à margem direita do rio Paraguai. Por isso, a fronteira com a Bolívia, ali, é seca. Na realidade, o rio só separa os dois países muito mais abaixo, logo depois do Forte de Coimbra – sítio histórico mantido pelo Exército há séculos – e, a partir dali, configura a Linha de Fronteira por 48 km – único acesso boliviano para o mar – até a divisa com a República do Paraguai. Nesse ponto, separa esse país do Brasil, até receber seu afluente Apa, bem mais ao sul, onde então penetra totalmente em território paraguaio. Quem chega a Corumbá e se dirige para leste, em direção a Ladário, vê o rio à sua esquerda e imagina que a grande planície encharcada que surge além dele seja a Bolívia. Engano. Ali é o Brasil. É o Pantanal. O acesso à Bolívia se dá por terra, a oeste de Corumbá, num local chamado Posto Esdras, onde há um pequeno riacho – o "Arroyo Concepción" – às margens do qual estão os postos de fronteira dos dois países.

O percurso do Morrinho ao centro de Corumbá duraria pouco mais de uma hora. O Cantor se sentia ansioso com aquele retorno inesperado. Por força das idas e vindas de sua situação profissional, imaginara que nunca mais voltaria ao local onde se casara e procriara. Mas a vida dera muitas voltas....

Finalmente o perímetro urbano de Corumbá apareceu. A cidade crescera muito, desde que ele saíra de lá. Já não identificava muito bem aqueles subúrbios por onde o ônibus transitava, para estacionar pouco depois, na moderna estação rodoviária, que ele ainda não conhecia. Através da janela ele reconheceu a prima que o esperava, ao lado de um Gol meio castigado. Ele saltou; um bafo quente o atingiu de chofre – 45º era a temperatura local, e seu termômetro biológico estava desajustado para aquela região; apanhou as malas e abraçou a prima, que o deixaria no hotel reservado dias antes. Estava dada a partida num processo que iria marcar para sempre os sete amigos. Mas nenhum deles poderia imaginar o que ainda estava por vir. 

Relaxou, ao chegar ao quarto do hotel. O que mais fizera em sua vida fôra viajar e hospedar-se sozinho nos lugares mais estranhos do país e do exterior. Por força dessa prática, adquirida ao longo de muitos anos, em poucos instantes já estava à vontade: desfizera a mala, tomara um banho gelado e arrumara os poucos pertences que levara – ficaria ali por três dias, no máximo. Retirou do frigobar uma lata de cerveja, acendeu um cigarro, abriu as portas que davam para a pequena varanda e pôs-se a fitar o Pantanal, ao longe. Permaneceu assim por mais de uma hora, consumindo outras latas e relembrando todas as suas passagens anteriores por aquela região. Um sentimento nostálgico o envolveu. Olhou o relógio. Quase cinco da tarde. Hora de reencontrar a prima, olhar por fora as vilas alugáveis que ele lhe pedira para localizar, e levá-la a um restaurante, para retribuir as gentilezas.

Antes de sair, telefonou para Ângela, uma corretora de imóveis, sua velha conhecida, a quem ele fizera o mesmo pedido. Ela atendeu e prometeu encontrá-lo no dia seguinte. Ele saiu. A prima já o esperava à porta do hotel. Por causa do feriado de Finados, a cidade não tinha qualquer movimento. Passaram rapidamente em frente às vilas; conversaram um pouco, entre uma cerveja e outra, num dos poucos bares abertos, e retornaram ao hotel, onde se despediram. Ele demorou um pouco a dormir, por causa do calor intenso, que o ar condicionado não conseguia suavizar. Mas a televisão o hipnotizou, e ele, afinal, caiu em sono profundo.

Despertou antes da sete horas, lembrando-se dos hábitos da terra. Tudo começa cedo, em Corumbá. Mas entre onze e meia e treze e trinta, tudo pára. É a "siesta", costume local, adquirido dos bolivianos e paraguaios. Ingeriu rapidamente o café da manhã. A prima o aguardava novamente, para levá-lo a visitar as tais vilas. Decepcionou-se. O estado precário das casas exigiria investimentos de vulto, a custos inimagináveis. Às onze e trinta, a prima o deixou no aeroporto. O avião que traria o Chefe e o Jockey estava para chegar. A seu lado, uma loura alta ostentava um cartaz com o nome do Jockey. Era a recepcionista de uma locadora de automóveis. Ele havia reservado por telefone um Corsa quatro portas, com ar condicionado. "Graças a Deus", pensou. 

O Fokker F-100 da TAM pousou suavemente. Do terraço, ele acompanhou a chegada dos amigos. Em pouco estavam juntos – ele à direção, mostrando como era fácil orientar-se naquela cidade traçada geometricamente. Os celulares dos colegas continuavam a infernizar seus ouvidos, mas ele decidiu não criar caso. 

O encontro com Ângela foi efusivo. Ela os levou para ver vários imóveis, dentre os quais o Casarão. Magnífico sobrado, em ponto privilegiado da cidade, próximo ao centro, mas sem a agitação do mesmo. No térreo, além da garagem, piscina e churrasqueira, havia um imenso salão de estar, sala de jantar, alpendre, um quarto com banheiro ao lado, cozinha, lavabo, dependências de empregados, lavanderia...Um luxo ! No andar de cima, três suites e um escritório. Mais de 400 m2 de área construída. O proprietário era um advogado local, idoso, seu conhecido havia muitos anos, que estava se mudando para outra cidade. Negócio limpo, fechado na hora, sem traumas. Estava resolvido o problema do alojamento dos engenheiros. Faltavam os peões. As vilas, e até um pequeno hotel, estavam fora de cogitação, quer pelo estado precário, quer pelos custos. Mas Ângela não desistia. E ao final da tarde, quando uma certa apreensão já os dominava, ela bateu na testa e falou:

- "Lá em Ladário tem uma pousada para alugar !"

A idéia era boa. A obra seria realizada no estaleiro do Cliente , precisamente em Ladário. Se os peões pudessem ser alojados por ali, tudo ficaria mais fácil. E depois de rodarem um pouco pelas ruas de terra do pequeno município, por fim chegaram diante de um imenso muro branco. Era a Pousada . Bateram palmas, apertaram uma campainha aparentemente inoperante, bradaram "Ó de casa !" várias vezes, até que um bugre apareceu à porta. Era Vivaldo, o caseiro. Calado, desconfiado, observador, e, como a maioria dos "caipiras", portador daquela proverbial esperteza com que Deus parece suplementar a falta de cultura dos humildes. Ele abriu o portão de madeira e os levou até a beira da piscina, onde havia algumas mesas e cadeiras de plástico, que eles ocuparam. 

- "A dona já vem", disse Vivaldo, e desapareceu no imenso quintal. 

Eles olharam em volta: em dois dos vários prédios, eram visíveis as portas dos apartamentos. Um terceiro era um restaurante. Num outro, algumas facilidades, como sauna e mesa de sinuca. Começaram a se entusiasmar com o local, mas estavam ainda receosos quanto ao preço que lhes seria pedido pelo aluguel daquele sítio tão aconchegante. Uma voz os interrompeu:

- "Boa tarde !"

Se Ângela pudesse ler os pensamentos de seus três clientes naquele momento, ficaria surpresa - a mesma interjeição lhes havia vindo à mente, quase chegara a seus lábios, mas fôra recolhida a tempo: "PQP !"

Era a dona da Pousada. Morena. Alta. Espigada. Porte de prima-donna. Cabelos curtos, bem negros, encaracolados. Aparentava pouco mais de trinta anos de idade. O corpo, esculpido cuidadosa e diariamente numa academia de ginástica – como eles saberiam pouco depois – era deslumbrante. Ela usava um vestido longo, semitransparente, que permitia entrever-se a sombra da calcinha, tipo bikini. As coxas e pernas eram magníficas. Ao caminhar, sem qualquer pressa, os quadris, realçados pela cintura bem fina, balouçavam sensualmente. Ela aparentava saber claramente o quanto de sedução estava jogando ali. Sentou-se ao lado deles e cruzou as pernas, deixando que o vestido subisse um pouco acima dos joelhos. Inclinou-se para o Chefe, de tal maneira que o decote caiu um pouco e eles puderam apreciar parte dos seios pequenos, duros e empinados. Apresentou-se:

- "Muito prazer, Márcia."

Divorciada de um gângster local, que a trouxera de outro Estado. Sem filhos. Comerciante desde criança, era uma negociadora implacável. Todavia, pelos muitos sofrimentos que a vida lhe impusera, tornara-se uma pessoa amarga e cruel. Em sua mente, parecia haver uma só palavra – dinheiro. Brigava por centavos. Ofendia. Agredia. Perdia a têmpera. Não cedia em nada. Não tinha complacência ou comiseração por quem quer que fosse. Uma mulher má, uma belíssima mulher, muito má, mas com um infinito poder de sedução. Uma bruxa. Mas a Pousada era a solução ideal para o empreendimento. E o negócio, depois de muita luta, foi fechado. Sob protestos do Cantor, que com ela antipatizou de imediato, e que com ela se indisporia até o fim. Mas com complacências: uma do Jockey – parcial; ele, sempre pragmático, considerara que a relação custo-benefício favoreceria a empresa; e outra do Chefe – esta, total; Márcia viria a ser o amor platônico local que ele cultivaria ao longo de todo o empreendimento...

Ângela ainda tentou adverti-los:

- "Essa mulher não presta. Eu não me lembrava bem dela. Pensei que a Pousada ainda estivesse com o marido, que era um "bom bandido", mais fácil de negociar. Mas parece que ele saiu de Corumbá, está doente, internado não sei onde...". E com efeito, a honesta Ângela jamais veria um centavo da comissão que Márcia lhe ficara devendo....

Mas era tarde. Eles voltaram para o hotel e mergulharam na piscina, para fugir um pouco do brutal calor. Agora a temperatura ambiente atingira 48º. A água estava morna. Entre uma cerveja e outra, fizeram um balanço das decisões tomadas até ali e planejaram o retorno ao Rio e uma futura vinda, em dezembro, para implementação de outras medidas. 

O jantar transcorreu em afamada peixaria local. O pintado à escabeche, as costelas de pacu e o caldo de piranha que ali experimentaram – naturalmente, já velhos conhecidos do Cantor, que sugerira aquele restaurante - passariam a ser seus pratos favoritos, dali por diante.

O dia seguinte foi consumido entre as negociações finais com os donos do Casarão e da Pousada e um rápido passeio à Bolívia, onde foram surpreendidos com a existência de um fantástico hotel cinco estrelas – "Quem se hospeda aqui neste fim de mundo ?", pensaram – e um shopping center bastante moderno, na Zona Franca Puerto Aguirre. Naquele momento, nenhum deles poderia imaginar o incontável número de vezes em que retornariam àqueles locais, nas situações mais curiosas...

E no terceiro dia, voltaram ao Rio, cheios de planos.

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