GAMBERETTI AL MARE
Fernando Borba

Quando Francesco estudava arquitetura em Veneza, gostava de passear no cais do canal de San Marco pela madrugada. Ele encontrava gondoleiros bêbedos, mulheres da vida que ficavam nuas tentando matar um calor sem remédio, pintores desesperados para imitar em suas telas o incêndio de chamas douradas que irrompia no céu, músicos celebrando a aurora com o som de suas trompas e cornamusas. Um dia um velho maestro lhe disse que antes da manhã se abrir, caminhasse até passar a Ponte Del Vin, entrasse num beco que sobe em direção à igreja de San Zacaria, e depois virasse à esquerda, e depois batesse à porta de uma taverna com uma placa escrito Bernarda. 'Se ela, Bernarda, estiver arrumando as mesas, vai te abrir a porta. Entra, senta em algum lugar e não esperes que ela te pergunte nada. Ela não fala, ela só costuma olhar para os homens de um jeito faiscante, com sede. Pede Gamberetti al Mare e um Chianti, para esperar.'

Fez assim. Ela era uma mulher de cabelos revoltos, boca graúda, olhos fosforescentes. Francesco ficou a beber o Chianti, esperando em silêncio que Bernarda trouxesse o mais delicioso Gamberetti al Mare que ele podia imaginar.

Quando terminou de comer, sem mais ninguém na taverna, Bernarda passava um pano nas mesas de tábuas escuras, nos vitrais das janelas, nas cabeças de mármore do tempo de Leonardo Donà. Francesco a olhou com desassossego, e pensou que somente o vinho não explicava que ele sentisse o que sentia. Chamou-a, primeiro com um sibilo, depois dizendo alto seu nome, batendo na mesa com a mão, com o cabo da faca, com a garrafa vazia a ponto de quebrá-la. Levantou da cadeira, ensolarado de desejo. Passou a mão em seus cabelos. Pediu, implorou. Bernarda negou-lhe. Fez o que nunca havia feito: segurou uma mulher com brutalidade covarde. Bernarda lançou duas labaredas negras de seus olhos sobre ele e começou a desabotoar o vestido. O desejo arrebentava a costura da roupa de Francesco. Ela tirou do corpo o casaco pardo, uma camisa sem cor, uma malha, as saias, as mutandine. Em vez de seios, tinha duas cicatrizes. Exibiu seu sexo. Era uma carapaça áspera, cinzenta, que começava no umbigo e se espalhava até os lados das pernas, e nela não se via a delicada seteira que têm as mulheres, mas rugas, pólipos, fragosidades que deixavam escorrer uma linfa malcheirosa. Aquela monstruosidade não abrandou o desejo de Francesco. Ele a possuiu como um bicho por cima do balcão, arredando os odres com patadas desesperadas, quebrando as campânulas que cobriam os queijos. Bernarda lhe mordia a boca e rasgava suas costas com as unhas negras.

Ele saiu da taverna como um alucinado. A receita de Bernarda ainda não deixara sumir o veneno afrodisíaco em seu corpo. Ao passar diante da igreja de San Zacaria, subiu os degraus, forçou uma porta, conseguiu entrar. Na parede do batistério viu um painel representando as santas mulheres a caminho do Calvário, e sua inquietação aumentou. Francesco abriu a calça e escolheu uma daquelas figuras sombrias como objeto de seu desejo solitário e sacrílego. Depois perdeu a consciência. Já com o sol alto, acordou deitado nas cantarias do pátio, com o rosto sobre uma poça de vômito.

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