BICO
DE ANU-PRETO
Francisco Pascoal Pinto de Magalhães
Asa-branca, arribaçã, carão, cancão, carcará, rolinha fogo-pagou, sangue-de-boi. Pássaros do meu sertão. Bichos de canto e pena. Beleza cantada em prosa e verso pelos cantadores cegos e poetas do cordel, e caçada impiedosamente pelos meninos com suas estilingues e arapucas.
Estes pequenos aprendizes do perverso, quando começam a mudar a voz e nascer pelos embaixo do sovaco e outras partes pudendas, declaram aberta a temporada de caça ao pássaro anu-preto. A estória de que o pó do bico do anu tem propriedades mágicas de sedução é do tempo do onça. Por conta disso é que o pássaro negro - sim, o negro, porque bico de anu-branco não funciona - sofre cruel perseguição.
Morto o pobre anu-preto, arrancam-lhe o bico e torram-no até que vire pó. Um pouco desta poção espalhada sobre o ponto onde a mulher desejada urinou, faz com que ela se ofereça fácil àquele que a deseja.
Assim fez Raimundo, cansado de se inspirar em Joaninha para praticar o vicio solitário.
Quando finalmente conseguiu abater um anu-preto e preparar o bendito pó afrodisíaco, pulou a cerca do quintal de Seo Teodomiro, pai de Joaninha, cheio de libidinosas intenções.
Era noite. O luar do sertão andava ausente. Ficou de tocaia atrás do chiqueiro das cabras e esperou.
Lá pelas tantas viu um vulto sair da cozinha, esgueirar-se pela escuridão e agachar-se atrás de uma pilha de lenha. Depois ouviu o barulho de cachoeira no chão seco há meses sem ver uma gota de chuva.
"É ela", sorriu. "Toda mulher urina de cócoras. Outra não há na casa além de Joaninha". Dona Sinhá, mãe da moça, era defunta há uma década.
Quando o vulto voltou para dentro da casa, ele foi lá, tocou o dedo no ponto molhado onde o jato tinha feito um pequeno buraco e deu-se por satisfeito:
"Foi aqui mesmo que ela desaguou. Tá inté morninho ainda..."
E espalhou o corrimboque inteiro por cima que era para a paixão ser bem violenta.
Uma semana se passou e Joaninha não deu nem as horas. Passava rumo à escola cheirando a água de colônia, de uniforme limpo, negras tranças, cadernos cobrindo os seios pequenos, distante. Raimundo significava para ela o mesmo que um mourão de cerca.
Ele já estava convencido de que o pó não funcionara quando Virgílio, irmão de Joaninha, encontrou-o na beira do rio e chamou-o para uma conversa de homem para homem.
Ficou meio com medo e meio animado. Que queria ele? Dizer que a irmã andava estranha querendo fugir de casa? Que revelara estar doidamente apaixonada? Que queria saber o que estava acontecendo entre os dois?
Não era nada disso. Era pior.
Ali mesmo, no banco de areia, o cabra entregou a rapadura: Era baitola. Gostava mesmo era de homem, o fresco. Demorara para se convencer disso, porque achava que era macho até debaixo d’água. Só que algumas das suas atitudes inconscientes o deixaram desconfiado: não se animava nunca no rala-bucho, sempre se agachava para mijar, sonhava de noite usando o sutiã e a calcinha da irmã... Agora tinha certeza do que e quem queria.
"De uma semana pra cá, desde que fui ao quintal tirar água do joelho, que não paro de pensar em você, Raí.", confessou íntimo.
Foi além. Pediu um cheiro no cangote, para começar.
Raimundo, decepcionado, caiu no mundo; foi pro Sul, deu pra beber, virou indigente. Foi enterrado como tal.
Virgílio foi atrás dele. Não o achou, virou cabeleireiro de celebridades e ficou podre de rico; mas pegou doença ruim e finou-se moço ainda.
Joaninha, cega a vários outros pretendentes, virou ratazana de sacristia. Iludida, alimentou um amor não correspondido com um padre alemão e morreu encalhada aos 90 anos.
"Praga de anu-preto pega, sinhozinho" advertiu o preto véio que contou o causo.
Os meninos largaram mão das estilingues, deixaram os pássaros voar em paz pela caatinga.
Fosse hoje em dia, diriam tratar-se de consciência ecológica.
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